Teólogo Sergio Alejandro Ribaric’. Professor, Mestre e Doutor. Coordenador de Teologia da Faculdade São Bento e professor no ITESP.

Conto originalmente intitulado “O mérito de um jovem sacerdote“. Retirado do livro: Cuentos Jasidicos del Holocausto, autora: Yaffa Eliach, Buenos Aires, Editorial NER, 2007 (resenha completa neste Site).

                Era o ano de 1942. O assassinato de judeus no gueto de Cracovia estava em seu apogeu. Cerca de 5000 vítimas foram deportadas ao campo de extermínio de Belzec[1].  Centenas estavam sendo assassinadas no próprio gueto, mortos a tiros nas ruas a caminho da deportação. Entre eles estavam o Dr. Arthur Rozenzweig, chefe do judenrat[2], o famoso poeta idish Morderajai Gebirtig e o famoso e velho artista Avraham Neumann.

                A jovem família Hiller percebeu que seus dias no gueto estavam contados; também eles logo seriam varridos por alguma das frequentes aktions[3].  Mesmo assim ainda soprava uma pequena esperança. Eles eram bons artesãos e ainda jovens, o que lhes dava alguma chance a mais de permanecerem vivos no gueto. Ao menos por mais tempo. Mas o destino de seu pequeno filho, Shajne, de dois anos, era bem diferente. Crianças, principalmente as de pouca idade, eram raríssimas no gueto; a inanição, as doenças e as cada vez mais frequentes seleções para extermínio imediato, acabavam caindo cada vez mais sobre esses pequenos. Helen e Moche Hiller começaram a planejar febrilmente um plano para salvar seu pequeno Shajne. Depois de considerar possiblidades diversas, decidiram contactar-se com amigos deles do lado ariano, no pequeno povoado de Donbrowa, um casal não judeu, católico e sem filhos, chamados Yajowitch.

Hellen Hiller com a ajuda de voluntários do movimento clandestino judeu, saiu as escondidas a caminho de Donbrowa. Foi ao encontro do Sr. Joseph Yajowitch e sua esposa e lhes suplicou que tomasse a seu cuidado o seu pequeno filho e o levassem para longe, pois eram cada vez maiores os perigos do Gueto. Mesmo com grande risco às suas próprias vidas, seus amigos cristãos aceitaram acolher o menino.

Somente depois da grande aktion de 28 de outubro de 1942, quando mais de seis mil judeus foram enviados à morte em Belzec perceberam que não havia mais tempo a perder. Naquele momento, além dos pacientes de hospitais judeus, os residentes do lar de velhos e 300 crianças do orfanato foram assassinadas no ato. No mesmo dia a família Hiller decidiu colocar em prática o seu plano.

Em 15 de novembro desse ano, Helen Hiller tirou seu filho às escondidas do gueto. Juntamente com o menino, deixou dois envelopes ao casal cristão. Em um deles estavam relacionados todos os bens valiosos da família Hiller e no outro uma carta e um testamento. A carta estava dirigida ao Sr. e Sra. Yajowitch declarando a guarda do pequeno Shajne, recomendando que ele fosse educado como um judeu e fosse devolvido ao seu povo e a sua família em caso de morte dos pais. A carta incluía também um testamento e o nome e endereço de parentes no Canadá e em Washington DC.

A outra carta estava dirigida ao próprio Shajne. Eram palavras doces que tentavam não mostrar a dor de sua decisão. Diziam que não lhes restava outra opção, senão a dolorosa de abandoná-lo aos cuidados da família Yajowitch. Recomendavam que não importasse o que acontecesse daí pra frente, ele devia se lembrar que era um judeu e pertencia ao povo judeu. E a esperança deles era que fosse sempre presente e orgulhoso de sua herança judaica que os pais lhes deixavam.

O testamento estava escrito pela mãe de Helen, a Sra. Reizel Würtzel.  Estava dirigida a sua cunhada, Jenny Berger de Washington. Escrevia sobre as horrendas condições do gueto, as deportações, a morte de membros de sua família e da iminente morte deles próprios. Assim escreveu: “Nosso neto, chamado Shajne Hiller, nascido em 22 de agosto de 1940, foi entregue a um bom casal com passaporte alemão. Suplico que, se nenhum de nós voltar, tomem o menino com vocês; eduquem-no para que seja um homem justo e piedoso.  Recompense bem a esta família que os acolheu e os salvou e que Deus lhes conceda vida a todos. Beijos de sua irmã. Reizel Würtzel.“

 Enquanto Helen entregava as cartas para a Sra. Yajowitch, novamente repetiu suas recomendações: “Se eu ou meu esposo não voltarmos depois que esta loucura acabar, por favor, envie esta carta aos nossos parentes nos Estados Unidos. Eles certamente responderão e adotarão o menino. Não importa qual seja o meu destino ou o de meu marido, quero que meu filho cresça como um judeu”. As duas mulheres se abraçaram e a Sra. Yajowitch prometeu que faria tudo o que estivesse ao seu alcance. A jovem mãe abraçou e beijou longamente seu filho e se retirou, temendo que suas emoções a traíssem e não fosse capaz de deixar seu pequeno filho nessa casa estranha e levando-o de volta ao gueto.

Era um lindo dia de outono. As águas do Vístula[4] refletiam as folhas do outono polonês. O Wavel, antigo castelo dos reis poloneses, via-se mais majestoso do que nunca. Algumas mães passeavam com seus filhos, e ela, a jovem mãe judia, tentava em sua amargura, conter suas lágrimas.

Ao sair de lá apressadamente, percebeu que estaria chamado a atenção. Resolveu diminuir o passo e andar como se estivesse saído para admirar as paisagens da antiga Cracovia. Para dissipar qualquer suspeita sobre si, exibia ao redor de seu pescoço uma enorme cruz e entrou na Igreja da Virgem Maria, na antiga praça.

Ter tirado clandestinamente o pequeno Shajne do gueto para o lado ariano tinha sido uma ação rápida e num momento oportuno. O gueto de Cracovia foi totalmente dizimado em março de 1943. As pessoas dos campos de trabalhos adjacentes ao gueto foram transferidas para a próxima Plaszow e a mais distante Auschwitz. Todo judeu que fosse encontrado escondido era fuzilado no ato. Cracovia foi o primeiro assentamento judeu sobre o solo polonês, remontando-se ao século XIII. Estava agora Judenrein! (livre de Judeus).

As buscas da família Yajowitch, logo após a guerra, sobre o destino dos jovens pais do menino resultaram sempre infrutíferas. Eventualmente ouviam falar que os Hiller compartiram o destino da grande maioria dos judeus de Cracovia. Ambos consumidos pelas chamas do Holocausto.

Mas não foi fácil para o casal Yajowitch. Eles também enfrentaram muitos dias perigosos. Mudaram-se para uma casa nova numa cidade diferente. Vez ou outra se ocultavam em granjas ou silos quando o pequeno Shajne tinha uma de suas crises de choro, chamando por sua mãe e seu pai. Mantinham-se escondidos temendo que os desconfiados vizinhos, quase sempre hostis, os traíssem e denunciassem para a Gestapo.

Mas o tempo é o maior dos remédios!  

O pequeno Shajne parou de chorar. A sra. Yajowitch ficou muito unida ao menino e o amou como se fosse seu próprio. Se orgulhava de “seu filho” e o amava profundamente. Com seus enormes olhos sempre estava alerta e cuidando dos passos do menino. Ela e o pequeno Shajne sempre frequentavam o serviço dominical católico, missas, e logo o rapaz sabia de memória todos os cantos e orações da Igreja. Sendo ela uma católica devotada, decidiu por batizá-lo na Igreja Católica e fazer dele um católico pleno.

Foi até um jovem padre numa Igreja em Cracovia que tinha uma reputação de ser sábio e confiável. A Sra.Yajowitch revelou ao jovem padre o segredo da verdadeira identidade do menino que tinha sido confiado a ela e a seu marido, Joseph e lhe disse seu desejo de batizá-lo para que fosse educado como um verdadeiro cristão e um católico fervoroso como ela própria.  O jovem sacerdote escutou atentamente a história da mulher. Quando terminou de ouvir todo o relato, perguntou: “E qual era o desejo os pais quando confiaram a seu único filho a Sra. e a seu esposo?”

A Sra. Yajowitch então confidenciou ao sacerdote sobre as cartas que recebeu da mãe e ao pedido póstumo do casal para que o menino soubesse de suas origens judaicas e fosse devolvido aos seus familiares e ao seu povo, em caso deles morrerem no gueto.

O jovem sacerdote advertiu a Sra. Yajowitch que seria injusto com a memória dos pais verdadeiros batizar o menino como cristão. Ainda havia a responsabilidade e o compromisso assumido por eles de entrar em contato com seus parentes na América. A eles cabia essa decisão. Advertindo-os que não sendo essa a vontade dos verdadeiros pais e em respeito aos desejos deles, não quis realizar o batismo do garoto.

Algum tempo depois dessa conversa e seguindo as orientações do jovem sacerdote, o Sr. Yajowitch enviou finalmente as cartas aos EUA e ao Canadá, notificando os parentes sobre a existência do menino, filho do casal Hiller. Tanto Jenny Berger, de Washington DC, como o casal H. Aron de Montreal responderam imediatamente, declarando a sua disposição de trazer o menino aos EUA e ao Canadá de imediato.

Começou então uma batalha judicial em ambos os lados do Atlântico que se estenderia por longos quatro anos. A lei polonesa do pós-guerra proibia crianças polonesas órfãs de saírem do país. As leis imigratórias dos Estados Unidos e do Canadá eram muito restritas, e não emitiram permissão e vista de entrada para o menino Shajne. Finalmente em 1949, a congregação judaica canadense obteve permissão do governo do Canadá para trazer ao país 1210 crianças órfãs cujos pais tinham sido assassinados pelo regime nazista. Conseguiram então que Shajne fosse incluído nesse grupo. Aliás seria o único deles que viria da Polônia. Uma ação judicial em Cracovia, permitiu que Shajne tivesse sua guarda definitiva dada aos parentes canadenses e estadunidenses.

Em junho de 1949, o navio Batory atracou no cais 88 ao pé da rua 48, oeste da cidade de Nova York. A bordo estava o pequeno Shajne, passageiro de primeira classe da cabine 228. Foi recebido pelos seus parentes, a Sra. Bergen e a Sra. Aron.  Durante o ano seguinte, Shajne viveu em Montreal. Em 19 de dezembro de 1950, após dois anos de gestões por parte de Jenny Berger, o presidente Harry S. Truman assinou uma lei que fez de Shajne Hiller um integrante da família Berger. O caso tomou o noticiário do país. Quando Shajne finalmente chegou ao lar dos Berger numa sexta feira, 9 de fevereiro de 1951, havia uma nota de primeira página no “The Washington Post”[5].

Haviam se passado mais de 8 anos desde que a avó materna de Shajne, Reizel Würtzel, escreveu do Gueto de Cracovia a carta para sua cunhada (sua tia-avó), Jenny Berger, pedindo-lhe que acolhesse seu pequeno neto em seu lar e em seu coração. Sua vontade e testamento finalmente se cumpriram.

Passaram-se os anos. O jovem Shajne educou-se em universidades dos EUA e cresceu até se tornar um homem exitoso. Chegou a vice-presidente de uma importante companhia americana, assim como também um judeu observante. A relação entre ele e a Sra. Yajowitch foi duradoura. Frequentemente trocavam correspondências, e tanto Shajne como sua tia-avó, Jenny Berger, enviavam continuamente presentes e dinheiro para, dessa forma e tanto quanto possível, aliviar a velhice do tão querido casal.  Em sua vida ele preferiu não comentar o Holocausto com a sua esposa, seus filhos gêmeos, sua família e amigos. Mesmo assim, todos sabiam da maravilhosa atitude do casal Yajowitch que salvou a vida de uma criança judia, e garantiram a sua entrega aos familiares judeus, respeitando que o mesmo permanecesse membro de seu povo, honrando assim a última vontade dos pais.

Em outubro de 1979, Shajne, agora Stanley, recebeu uma carta da Sra. Yajowitch. Nela revelava, pela primeira vez, sua intenção de batizá-lo e criá-lo como filho e como católico. Também descreveu em detalhes sua reunião com o jovem padre e pároco, naquele fatídico dia em que percebeu que ele não lhe pertencia. Esse então jovem sacerdote e pároco era o homem que mais tarde se transformou no cardeal de Cracovia, Karol Wojtyla e que, no dia 16 de outubro de 1978, foi eleito pelo colégio cardinalício, Papa, assumindo o nome de João Paulo II.

Quando o grande Rabi de Bluzhov, Rabí Israel Spira, ouviu esta história pela primeira vez, exclamou: “Deus tem maravilhosos e misteriosos caminhos aos homens. Talvez tenha sido o mérito de salvar uma única alma judia o que produziu sua eleição para Papa. É uma história que deve ser sempre contada”.

Baseado em conversações da autora,  Yaffa Eliach, com Shajne Hiller (Stanley Berger), sua família e sua sogra, a Sra. Anne Wolozin, em setembro 1977 a 7 de outubro de 1981.

Cuentos Jasidicos del Holocausto, autora: Yaffa Eliach, Buenos Aires, Editorial NER, 2007.

[1] Belzec foi o primeiro campo de extermínio alemão criado na Polônia ocupada, a menos de 2 km ao sul da estação ferroviária da vila de Bełżec. Estima-se que 430 000 a 500 000 judeus tenham sido mortos em Bełżec pelos alemães, juntamente com um número desconhecido de poloneses e ciganos. São conhecidos apenas dois ou três judeus sobreviventes.

[2] Judenrat, palavra alemã para “Conselho Judeu”, eram a designação dos corpos administrativos que os alemães requisitaram que os judeus formassem em cada gueto do Governo Geral (Parte central da Polónia ocupada).  Estes corpos de gerência eram obrigados a assegurar o governo geral do gueto, e situavam-se como intermediários entre os nazis e a comunidade judaica. Eles foram forçados pelos nazis a providenciar judeus como trabalho escravo e a assistir na deportação de judeus para campos de extermínio, durante o Holocausto. Aqueles que recusavam seguir as ordens, ou eram incapazes de cooperar totalmente, eram frequentemente cercados e assassinados ou deportados para os campos de extermínio.

[3] Operação de “Pacificação” foi o segundo estágio da campanha de violência da Alemanha Nazista durante a Segunda Guerra Mundial que visava eliminar intelectuais e a classe mais alta da sociedade judaica e polonesa através dos territórios previstos de anexação. A maioria dos assassinatos foram organizados em forma de desaparecimento em massa pelas múltiplas cidades e vilarejos sobre o domínio alemão.

[4] O Vístula é o mais longo rio da Polônia. Em seus 1 047 km banha quase dois terços da superfície da Polônia, fluindo pelas maiores cidades da Polônia, incluindo Cracóvia e Varsóvia.

[5] “Rapaz de dez anos, órfão por culpa dos nazis, obtém asilo no distrito”. The Washington Post, Washington, 9 de fevereiro de 1951.

NOTAS:
[1] Tradução livre de Sergio Alejandro Ribaric’. Este é um dos emocionantes contos, verídicos, do livro citado.
[2] Belzec foi o primeiro campo de extermínio alemão criado na Polônia ocupada, a menos de 2 km ao sul da estação ferroviária da vila de Bełżec. Estima-se que 430 000 a 500 000 judeus tenham sido mortos em Bełżec pelos alemães, juntamente com um número desconhecido de poloneses e ciganos. São conhecidos apenas dois ou três judeus sobreviventes.
[3] Judenrat, palavra alemã para “Conselho Judeu”, eram a designação dos corpos administrativos que os alemães requisitaram que os judeus formassem em cada gueto do Governo Geral (Parte central da Polónia ocupada).  Estes corpos de gerência eram obrigados a assegurar o governo geral do gueto, e situavam-se como intermediários entre os nazis e a comunidade judaica. Eles foram forçados pelos nazis a providenciar judeus como trabalho escravo e a assistir na deportação de judeus para campos de extermínio, durante o Holocausto. Aqueles que recusavam seguir as ordens, ou eram incapazes de cooperar totalmente, eram frequentemente cercados e assassinados ou deportados para os campos de extermínio.
[4] Operação de “Pacificação” foi o segundo estágio da campanha de violência da Alemanha Nazista durante a Segunda Guerra Mundial que visava eliminar intelectuais e a classe mais alta da sociedade judaica e polonesa através dos territórios previstos de anexação. A maioria dos assassinatos foram organizados em forma de desaparecimento em massa pelas múltiplas cidades e vilarejos sobre o domínio alemão.
[5] O Vístula é o mais longo rio da Polônia. Em seus 1 047 km banha quase dois terços da superfície da Polônia, fluindo pelas maiores cidades da Polônia, incluindo Cracóvia e Varsóvia.
Baseado em conversações da autora, Yaffa Eliach, com Shajne Hiller (Stanley Berger), sua família e sua sogra, a Sra. Anne Wolozin, em setembro 1977 a 7 de outubro de 1981.
Cuentos Jasidicos del Holocausto, autora: Yaffa Eliach, Buenos Aires, Editorial NER, 2007.

Nota da Editoria:

foto em destaque:

https://hhrecny.org/holocaust-survivor-speakers/stanley-berger. Acesso em 9/12/2022,