Nossas Artes

UM CANDANGO PAI E ARTISTA NA MATA E NOS HOTÉIS DA CIDADE (Nelson Peixoto)

UM CANDANGO PAI E ARTISTA NA MATA E NOS HOTÉIS DA CIDADE.

Chegou da Bahia no final da construção de Brasília, aos 8 anos, conseguindo, depois do alistamento militar, um emprego numa loja de ferragens (Casa do Barata de Taguatinga, DF). Era uma época promissora para rebater a situação em que o pai trouxera a família na busca de melhorar a vida. Era preciso buscar autonomia e tornar-se cidadão na capital do país ao completar 18 anos. Tinha junto de seus pais e irmãos o sonho de ter um terreno para erguer sua casa. De tanto trabalhar na loja de ferragens, imaginava que o dia esperado estava para chegar.

Ele me contou a parte bonita de seus lances que deram certo e o conduziram para bons momentos, apesar de trabalhar com sucesso, mas nunca se enchendo de orgulho. Lembra-se do Morro do Urubu, descrevendo os barracos, que mediam menos de dois metros quadrados, que era um amontoado de candangos que não tinham vez para morar nas partes nobres da cidade (Plano Piloto).

Sentiu que precisava se mexer para progredir e salvar sua família. Resolveu comprar um barraco no Morro do Urubu. Provavelmente, era o lixão da cidade ou nas proximidades, por onde as aves enlouquecidas de fome e com tanto barro vermelho e entulho pousavam e abrigavam-se para disputar comida.

Meu candango baiano trocou sua vitrolinha por um barraco que estava aos pedaços, mas não chegou a morar por lá. Era urgente ter um espaço para viver e erguer sua casa, seja lá onde fosse. Não passara dois meses pela troca milagrosa da vitrola, quando os caminhões da empresa, chamada Novacap, na época do governador Hélio Prates, começou a se importunar com o crescimento das favelas e das ocupações de terras destinadas aos mais ricos.
Os candangos migrantes, sobretudo do nordeste, que foram originários da construção de Brasília, fatigados com o ritmo das obras que findavam, resolveram permanecer na cidade e foram se alojando em áreas livres e possíveis de habitação. O Morro do Urubu, segundo o depoimento deste candango amigo, algo acontceu poucos dias mais tarde. Desencandeou-se a Campanha de Erradicação das Invasões (CEI).
Na verdade se tratava de ocupação como direito humano de morar. Houve um deslocamento compulsório dos favelados do morro do Urubu (atual Guará II) para que cada família ganhasse um lote de terra na grande área que passou a se chamar de (CEI)lândia. Este presente garantiu o direito de morar e de construir sua casa naquela cidade nascente em 1969.

A partir desse direito de moradia, sua empregabilidade e autoconfiança o levaram, ainda jovem, a trabalhar como recepcionista de hotel por quase dez anos. Lembra-se com muito emoção do St Paul Plaza Hotel, que no dia da inauguração, nasceu o seu primeiro filho. Conta que feliz e vibrando, foi ver o filho como o maior presente que Deus lhe dava, antes mesmo da casa própria e do emprego. Foi o barmam mais famoso que trabalhou ali. Esmerava-se em cordialidade e gentileza autêntica para saudar as pessoas e atender a suas necessidades.Seu jeito intuitivo que lhe rendeu simpatia e confiança em si e em muitos empresários dos hotéis. Sobre o salário que recebia, foi sempre o mínimo, com gorjetas nem sempre razoáveis. Declara que fez riqueza para os que já eram ricos. Consciente de seus talentos e conhecimentos, deixou os hotéis de Brasília para fazer um Curso na Escola de Belas Artes, no Rio de Janeiro, tendo como padrinho Stênio Garcia, que, de tão ocupado que era, não conseguiu encaminhá-lo no propósito de ser ator.

Trabalhou no Hotel Meridien no Rio de Janeiro e decidiu voltar a Brasília. Casou-se e prosseguiu sua vida de funcionário competente no ramo hoteleiro. Confessa que seu DNA inquieto o convencia de ter nascido com espírito aventurreiro. Se por um lado, o emprego foi garantido com sucesso, de outro lado, sua vida familiar foi definhando e gerando tanta dor com a separação da mulher que amava. Assim sofrendo, decidiu deixar a cidade e escolher, como disse-me, “um lugar distante”.

Veio para Manaus, sentindo a cidade como um paraíso para se viver e sufocar o passado. Renascendo das cinzas, conseguiu emprego no Hotel Tropical de Manaus, em 1984, no tempo áureo da companhia Varig, inaugurado em 1970. Depois de 5 anos, deixou o emprego no hotel. Afinal com a falência do grupo Varig também desmoronou a ocupação dos 611 apartamentos do hotel.

Dizendo ser “peão do trecho”, foi passar 4 meses no garimpo na terra dos Ianomamis, mas enfim voltou para Manaus. O garimpo trouxe-lhe a realidade da negação dos direito dos povos indigenas, mas também mostrou que tem gente que luta por eles, sem preconceito.
Eu conheci este amigo idoso com um violão na mão, caminhando para debaixo de frondosas mangueiras. Certa vez, fui atrás dele, mas por algum motivo nunca dedilhou a saudade da família e dos encantos de sua atividade “serviçal” nos hotéis. A virtude de servir, tão próxima ao que ordena Jesus, faz com toda atenção, sempre disposto a dar uma ajuda, buscando água ou um cafezinho para quem tem locomoção limitada. Creio que o violão é o seu mistério de amor ainda a ser revelado.
Aconteceu que, reunidos com outros da sua idade, fizemos um sarau e descobrimos o gosto musical da saudade mais do que da lembrança de ídolos da música romântica. Em memória do Agnaldo Rayol, escutamos para finalizar nossa conversa com a Ave-Maria. que dessa vez não foi o Ébrio de Vicente Celestino, que já cantamos numa tarde, na sombra das árvores gigantes.
O final da Ave-Maria traz para todos nós a emoção das palavras quando as pronunciamos. Nossa vida chegará ao encontro de amor com Deus Pai, através de sua Mãe… “Santa Maria, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém”.
Ouvida a música em latim, cantada pelo Agnaldo Rayol, falecido em 04 de novembro de 2024, demos graças a Deus que nos fez aproximar da Mãe de Jesus, onde o encontraremos.
  1. Obs. As duas últimas fotos foram cedidas pela fotografa Gisele B. Alfaia. @giselealfaia

Luiz Cassio

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