Contaram-me, certa vez, que eu tive um certo protagonismo em uma história, dentro da qual eu era um censor das peripécias e o incentivador de boas e solidárias ações. Lembro-me, apenas, de ser um incentivador de aventuras bonitas, recreativas e literárias.
Escrevo, então, uma devota recreação que o grupo de estudantes fazia em férias, sob o pretexto de pescar e passar umas horas remando e riscando a areia das praias, que nem maçarico, usando os pés em múltiplas e confusas andanças, confundindo e brincando de pisar no chão, deixando rastros de curupira. Outras vezes, escrevendo poesias, fazendo fogueira e contando leves mentiras.
A dupla mais “esperta” saiu para buscar o almoço. Sabiam navegar se arrastando com varas afundadas na areia do fundo, mas com pouca habilidade no manejo do remo. Saíram na direção das terras alagadas que possuem arbustos com os troncos embaixo d’água. Muito normal até aqui, pois o costume era pescar de malhadeira, esperando o peixe entrar na rede. Neste caso, os peixes não conseguiam sair de ré, devido às suas barbatanas presas. Porém, era necessário usar a rede do jeito que se arma para jogar voleibol.
Quem esperava com fome, o retorno dos pescadores, já tinha armado o fogo, roubado pimenta de um vaso velho e pedido farinha de um viajante que passara, espreitando a margem do lago. Ouviram-se gritos ao longe, na direção de onde estava a dupla de pescadores. Depois se soube que era um “par ou ímpar” para ver qual medroso ia mergulhar para armar a rede de malhadeira. Esse vexame se soube depois. Deixa para lá.
Os amigos, da foto antiga e gasta pelo tempo , saíram a passarinhar na colossal bacia do JURUPARI, e sem qualquer má intenção se depararam com uma malhadeira abarrotada de peixes, porém , o que nós nos interessávamos era pelo cuiú, de um metro de tamanho.
Um, entre os fogueteiros famintos , que esperavam o peixe, vira que um pescador solitário saíra de um outro braço de igarapé e por lá deixara sua rede de pesca estendida. Com a demora, não evitou a tentação de ir espiar se algum peixe já entrara na rede do pescador solitário. Sim, dito e feito, encontrara um cuiú-cuiú grande e outros peixes menores. Chegou-se ao grupo para fazer sua consulta, se podia ou não tirar o peixe para preparar o almoço.
Eu fui muito apressado para dizer não, pois seria um furto e deixaria os filhos do pescador com fome.
Houve uma discussão sem ninguém escutar o que o outro dizia, com pontos de vista diversos, onde até evocavam a passagem de Jesus com os discípulos , andando pelo milharal, justificando que nesse caso podia-se tirar algumas espigas de milho por entendimento paralelo do texto bíblico, mas sem acabar com o milharal, apenas tirar o peixe da malhadeira.
Esta história ganhou um outro título: PESCA AZARENTA. Vejamos essa versão do meu amigo Veltinho, o personagem principal do livro “A História de um Menino e a Casa Viva Memória” (2023), da Editora Alta Performance, de minha autoria.
O Veltinho relatou: “Depois de muito pesquisar, compreendi que alimentar 12 bocas sempre foi um desafio quando na época da piracema os peixes são ‘limitados’ e a escassez é rudimentar no arpão ou flecha. Nesse dia, em meados de 1980…A brutalidade deu lugar à necessidade de experimentar os desafios de uma barriga vazia ou saborear um encantado peixe do Rio Coari Grande”.
A princípio, ficamos eufóricos e lacrimejando, porém nosso mestre, o escritor que trouxe a memória dessa história, foi firme: ‘NÃO! Pode ser o único alimento desse pescador.’ Porém, cedeu ao capricho dos amigos o bruto cascudo da Amazônia! Ele tinha até cabelos na cabeça com as duas bolas de gordura… AÍ ficamos naquele embate: ter o que comer no almoço ou seríamos responsáveis pela fome da família do pescador solitário
Depois da farra do cuiú-cuiú muito bem cozido, muitas fotos e rasteiras no areal do Jurupari aconteceram, às margens do grande lago de Coari, AM, formado por três rios.
Soubemos que o pescador que havia levado um tombo dos “gente boa”, era seu Elpídio, gente da gente, que havia passado muitos dias caçando nos lagos, rios e bacias.
Porém, o pescador foi vencido pela voraz e efêmera paixão de seus algozes, infestados pela brincadeira e pelo brilho das águas serenas do COARI GRANDE, naquela tarde de sol.
Restou essa poesia, na saudade, lembrada por mim, escrita na areia pelo companheiro D. Jacson, que fora nosso amigo e mestre número 1 da turma:
“Madeiras toscas do rio / viajantes das ondas / viestes para nos aquecer / servistes com fogo para nos comover/.
Luz da amizade que não se apagou / e até recordamos a saudade que não passou / Matastes a fome de quem muito amou”.
Obs. Gratidão a fotógrafa e artista plástica Gisele B. Alfais, que nos cedeu a linda foto 3.
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