Quinta feira da 32ª semana do tempo comum.
A primeira dezena do mês de novembro, já se foi. Estamos nos preparando para o Dia da Consciência Negra, para desespero dos aloprados do poder, que seguem com os seus discursos de ódio e do negacionismo de sempre. Nunca que os conhecimentos científicos estiveram tão ameaçados pela insânia feroz de uma verdadeira aversão à ciência. Ao ponto de um grupo deles ameaçarem os vereadores de uma das cidades paulistas, contra a exigência do comprovante de vacinação nos eventos públicos da cidade. Parece que a insânia e a estupidez chegaram para ficar.
Rezei nesta manhã com a ajuda do padre e escritor francês Michel Quoist (1918-1997). Fui buscar no meu pequeno acervo bibliográfico, o livro “Poemas para Rezar”. Uma publicação de 1954 que sempre me acompanhou. Este livro muito me ajudou na minha caminhada espiritual encarnada na militância. Entre outras preciosidades, Quoist inicia a sua obra com o poema “Se Soubéssemos Escutar Deus”: “Se soubéssemos ouvir a Deus, o ouviríamos falando conosco. Porque Deus fala. Ele fala em seus Evangelhos. Ele também fala pela vida – que o novo evangelho a quem nós mesmos adicionamos uma página a cada dia”.
Escutar a Deus é fazer do nosso ser e estar no mundo, uma escrita permanente do Evangelho das nossas vidas. Nossos dias se transformando em páginas escritas por nós mesmos, através das nossas ações. Cada dia que passa é uma oportunidade de escrever esta história de vida, como testemunhas vivas da presença de Jesus em nós, sendo instrumentos nas mãos de Deus para realizar o seu projeto salvífico, através destas nossas ações. É o Reino mesmo sendo edificado pelas nossas próprias mãos. Somos testemunhas pascais do Ressuscitado que se faz um conosco nesta empreitada.
Estamos todos envolvidos na procura do Reino, muito embora, o próprio Jesus afirma no discurso escatológico do texto do Evangelho de hoje que: “O Reino de Deus está entre vós” (Lc 17, 21). Desta forma, seria inútil ficar procurando sinais misteriosos da vinda do Reino, como fizeram os fariseus diante de Jesus, e como fazemos muitos de nós hoje. Basta saber que o Reino se faz presente entre nós em qualquer lugar onde a ação de Jesus é continuada através de seus seguidores. O Reino de Deus se faz presente quando trago Deus presente em mim e o levo através de mim às demais pessoas, por meio das ações libertadoras que sou capaz de executar.
O Reino de Deus se traduz nas nossas ações de justiça, fraternidade, paz, solidariedade, amorosidade, generosidade, misericórdia, compaixão e, sobretudo, partilha dos bens. Numa sociedade em que predomina a desigualdade, o acúmulo, o egoísmo e a avareza, provocando a fome e as ameaças ao bem viver, dá mostras claras de que o Reino de Deus não está passando por ali. Ao contrário do Reino, está presente o anti-Reino, ou melhor o reino de “Mamon”. Esta é uma palavra hebraica bíblica (dinheiro), usada para descrever a riqueza material, a cobiça, a avareza, o acúmulo, típicos daqueles que cultuam esta divindade. Jesus até nos alerta que: “Não se pode servir a Deus e a Mamon”. (Mt 6,24)
O Reino anunciado por Jesus está entre nós! Esta certeza Ele nos dá. Neste Reino ao qual Ele se refere, Deus mesmo se faz presente no meio de nós. Aqueles que anunciam um Deus acima de tudo e de todos, estão se referindo a outro deus, o deus mamon. O deus das riquezas para o povo Sírio. O deus dinheiro. O deus poder. O deus enganação, pois enquanto ele está lá em cima, os filhos de Deus estão abaixo da linha da pobreza. Abaixo do nada, como disse o padre Júlio Lancellotti dias destes. O nosso Deus é o Deus vivo e encarnado em nossa realidade humana. O Reino está e precisa acontecer no meio de nós. Acontecendo em meio a realidade de fome, desemprego, falta de moradias, decorrentes do acúmulo de riquezas por parte de alguns. Enquanto isso, nossas igrejas seguem a sua rotina normal, com os nossos lideres “pregando” um Deus sacramental, distante desta realidade. A palavra “pregar” parece não ser a mais apropriada, quando se trata de anunciar o Deus de Jesus. Dá a ideia de que quem “prega” está, muitas vezes, falando daquilo que pode não estar vivendo na sua vida cotidiana. “Prega” para os outros aquilo que não vive em si mesmo.
Para experimentar o Reino já presente no meio de nós, precisaríamos passar por um processo de mudanças profundas no seio da nossa própria Igreja. Seria aquilo que nosso bispo Pedro chamaria de desevangelização. “Desevangelizar o mal evangelizado, para nós, na América Latina, só pode significar partir para uma plena libertação sócio-política-econômica, cultural, integral; só pode significar libertadoramente os processos históricos de nossos povos. Os processos de libertação de nossos povos, à luz da fé, se incorporam, fazem parte, constroem, em certa medida, anunciam, preparam, recebem, esperam… o grande processo do Reino”. (Pedro Casaldáliga – Na Procura do Reino págs 13 e 14).
Comentários