Sábado da décima nona semana do tempo comum.
Estamos vivenciando o segundo final de semana de agosto. No dia de hoje a Igreja nos reservou a festa de Santa Dulce dos pobres (1914-1992). Uma baiana “arretada” de Salvador, que conquistou o coração dos pobres. Seu trabalho com os empobrecidos é algo que chama a nossa atenção. Incorporou o espírito franciscano, se tornando uma das religiosas da congregação dos Missionários da Imaculada Conceição. Acolhia em sua casa as crianças, adultos e idosos pobres e deles cuidava com carinho de uma zelosa mãe. A primeira santa genuinamente brasileira, canonizada pelo papa Francisco em 13 de outubro de 2019. Seguia a risca uma de suas frases: “Quem tem mãos para servir, não tem tempo para fazer o mal”. Pobre, com os pobres e para os pobres.
Fazer o mal. Esta tem sido a lógica mais frequente em nossos dias atuais. Parece que estamos desprendendo a arte de amar. Amor que faltou aos algozes de Margarida Maria Alves (1933-1983). Como fui fazer uma roda de conversas ontem com os profissionais da educação da Escola Indígena Hadori, da aldeia Krehawã, para definir o cronograma da formação continuada, na perspectiva de re-elaboração do Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola, não tive tempo para rabiscar e falar de Margarida, que ontem fizemos a sua memória. Ela que foi assassinada cruelmente no dia 12 da agosto de 1983. A vida e o sonho de Margarida foram interrompidos brutalmente, com um tiro de espingarda que atingiu seu rosto. O crime aconteceu na porta de sua casa, em frente à sua família, em Alagoa Grande, no Brejo da Paraíba.
Margarida foi uma mulher lutadora. Sindicalista e defensora dos direitos humanos, uma das primeiras mulheres a exercer um cargo de direção sindical no país. Na sua pauta de lutas como sindicalista, estava a busca pela contratação com carteira assinada, o pagamento do décimo terceiro salário, o direito das trabalhadoras e dos trabalhadores de cultivar suas terras, a educação para seus filhos e filhas e o fim do trabalho infantil no corte de cana. Sua luta rendeu-lhe muita perseguição, inclusive a morte, tanto que seu nome e sua história de luta inspiraram a Marcha das Margaridas, que foi criada como dia de luta das mulheres trabalhadoras rurais do Brasil, uma vez, como dizia Margarida: “É melhor morrer na luta do que morrer de fome”. Margarida vive na voz de nosso menestrel Zé Vicente:
https://www.youtube.com/watch?v=uzlKXnHxIf8
Irmã Dulce dos pobres e Margarida Maria Alves, duas mulheres que, a seu tempo deram as suas vidas pelas causas do Reino. Vidas pela vida! Vidas pelo Reino! Reino como dádiva de Deus aos seus, sobretudo aos pequenos. Reino que é dádiva, mas que também é construção. Ações que vamos desenvolvendo na história como construção do sonho de Deus para nós. Deus mesmo que se faz presente nas nossas ações, na medida em que nos deixamos ser conduzidos pela força revolucionária de um coração que muito ama e se faz doação na gratuidade, como fez nossa Dulce dos pobres. O amor é revolucionário. Amor de revolução, de transformação.
Reino que é das crianças, como Jesus fez questão de frisar no texto que nos é trazido hoje pela comunidade de Mateus: “Deixai as crianças e não as proibais de vir a mim, porque delas é o Reino dos Céus”. (Mt 19, 14) As crianças como predileção especial de Deus. Destinatárias primeiras do Reino. Sem nos esquecermos de que, no tempo de Jesus, as crianças faziam parte dos “os últimos”. Ao lado das mulheres, dos doentes (coxos, cegos, aleijados, mendigos, pagãos), faziam parte da classe social marginalizada, excluída, tratados com preconceito. Estavam distantes das políticas publicas e da religião oficial do Templo. Até mesmo os discípulos reproduzem esta ideia de marginalização, não permitindo que as crianças se aproximassem de Jesus. Ciente disto, em outro momento Jesus vai mais longe ao afirmar aos fariseus: “Pois eu garanto a vocês: os cobradores de impostos e as prostitutas vão entrar antes de vocês no Reino do Céu. (Mt 21,28)
Um texto curto, mas de grande significância para o entendimento de nossa fé. São apenas três versículos em que Jesus nos mostra que a lógica de Deus está muito distante da lógica de alguns que baseiam a sua fé pela observância de preceitos, dogmas de um sacramentalismo deslocada da realidade prática da vida dos pequenos. Ao trazer a criança para o centro, Jesus devolve-lhe o status de pertença primeira ao Reino. Neste sentido, a criança serve de exemplo não pela inocência ou pela perfeição comportamental. Ela é o símbolo daquele que é fraco, sem pretensões sociais: é simples, não tem poder nem ambições. A criança é, portanto, o símbolo do pobre marginalizado, que está vazio de si mesmo, pronto para receber o Reino. Deixemos, portanto, aflorar em nós o espírito da criança que vive em nós, para assim também possamos fazer parte do Reino!
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