Reflexões Bíblicas

O fermento da traição (Chico Machado)

Quarta feira da Semana Santa. A “Semana Maior” vai se desdobrando enquanto caminhamos rumo à Páscoa. Uma semana em que, histórica e teologicamente, fazemos a memória da via crucis de Jesus rumo ao calvário. A cruz do castigo, da perseguição e da morte, preparada para Ele pelas forças do Império, e não como desejo de Deus para o seu Filho muito Amado. Ao enviar seu Filho ao mundo, Deus ordenou que a sua principal missão, era a defesa intransigente, gratuita e incondicional da vida para todos e todas em plenitude total: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância”. (Jo 10,10) Tanto que Jesus entendeu muito bem esta sua missão e deu a sua própria vida a todos aqueles que aceitam sua proposta.

Se meu coração foi dormir profundamente entristecido, o acordar de hoje não foi diferente. Dormi e acordei pensando nele: Dom Angélico Sândalo Bernardino. Um dos meus bispos de referência na história da Igreja fez a sua Páscoa no dia de ontem. Faleceu no fim da tarde desta terça-feira 15 aos 93 anos. Nasceu em 19 de janeiro de 1933, em Saltinho (SC). Cursou Filosofia no Ipiranga (SP), de 1952 a 1955; Teologia, em Viamão (RS). Também cursou jornalismo em Ribeirão Preto (SP) de 1953 a 1955. Foi ordenado presbítero em 12 de julho de 1959, em Ribeirão Preto (SP). Nomeado bispo em 12 de dezembro de 1974, recebendo a ordenação episcopal no dia 25 de janeiro de 1975, em São Paulo, pela imposição das mãos de dom Paulo Evaristo Cardeal Arns, O.F.M., então arcebispo de São Paulo.

Na arquidiocese de São Paulo, como auxiliar de Dom Paulo, foi bispo das regiões Belém, São Miguel, Brasilândia. Foi presidente do regional Sul 1 da CNBB; responsável pela Pastoral Operária da arquidiocese; diretor do jornal O São Paulo; responsável pela Cáritas no regional Sul 1. Foi na Região Episcopal de São Miguel Paulista, pertencente à Arquidiocese de São Paulo, que tive o prazer e o privilegio de encontrá-lo e trabalhar sob a orientação deste grande homem de Deus. Estava eu iniciando ali os primeiros passos do meu ministério presbiteral, já que havia me ordenado em 1989, e optei por trabalhar na Zona Leste de São Paulo, mais especificamente na Cohab Cidade Tiradentes. Com o sorriso aberto, chamava-me de “meu irmãozão, padre cabeludo” Angélico, um homem simples, humilde e despojado. Sua luta incansável pelos Direitos Humanos e pela classe trabalhadora orientou o meu ser padre, me fazendo ser quem sou na luta hoje pelos direitos das populações indígenas aqui do Estado de Mato Grosso. Dom Angélico vive em mim e agora intercede por todos nós junto do Pai.

A Igreja profética e dos pobres, perdeu mais um de seus dignos representantes. Dom Angélico não traiu as causas de Jesus, como alguns andam fazendo por ai, ou como fez Judas Iscariotes no Texto de Mateus que a liturgia nos reservou para esta Quarta feira Santa. Chamado pelo Mestre para fazer parte de seu grupo de seguidores, Judas preferiu ficar do lado daqueles que tramaram e executaram a morte de Jesus na cruz. Se vendeu por um preço irrisório: “Judas Iscariotes, foi ter com os sumos sacerdotes e disse: O que me dareis se vos entregar Jesus? Combinaram, então, trinta moedas de prata”. (Mt 26,14-15) Teve a grande chance de ser um como e com Jesus, trabalhando pelo Reino e pela vida dos pequenos, mas enveredou-se pelo caminho inverso da maldição, deixando se vender pela força do encantamento do dinheiro vil.

Engana-se quem interpreta o texto bíblico, dizendo que Judas entrou na história da salvação do projeto de Deus em Jesus, para que se “cumprisse as escrituras”. Esta é uma hermenêutica conservadora que não condiz com a exegese, sob a perspectiva libertadora do projeto de Jesus. Judas é a personificação de todos nós, seres humanos, que somos constituídos pelas limitações, pelas fraquezas e sujeitos a cair na tentação do dinheiro, do prazer, do prestígio, do poder, da fama, sobretudo nestes tempos dos influenciadores digitais, inclusive na perspectiva religiosa. A busca pela fama, interessa e atrai mais do que a entrega pelas causas dos empobrecidos, excluídos e marginalizados desta nossa sociedade moderna. Neste sentido, estamos sujeitos a sucumbir, exercendo também o papel de Judas nos dias atuais, quando nos deixamos levar por uma fé medíocre e incoerente, embalada mais pelas devoções, ritos e dogmas, que não nos levam ao comprometimento com as causas do Reino de Deus.

O fermento da traição está ao alcance dos nossos olhos, presente em muitos dos nossos anseios e desejos mais ocultos. Oxalá que, como Judas, não nos deixemos vender pela força maligna do dinheiro fácil, unindo-nos aos poderosos. Estar com Jesus e ser um seguidor, seguidora d’Ele, requer o compromisso com Ele, e estarmos preparados para as incompreensões, perseguições e até a morte pelas mesmas causas. Jesus sabia que a sua coerência e fidelidade na atividade messiânica, o levaria à morte. Entretanto, entre a conspiração das autoridades e a decisão traiçoeira de Judas, temos o gesto forte e significativo de uma mulher: reconhecendo o verdadeiro sentido da pessoa de Jesus, ela o unge como Messias (unção na cabeça) que vai morrer. O que aquela mulher faz é mais importante do que dar esmola aos pobres: não é possível realmente fazer o bem aos empobrecidos a não ser dentro do projeto de Jesus. Eles são os destinatários primeiros do Reino, já que se tornarão sacramento vivo da presença de Jesus no mundo. Quem trai a Jesus trai a si mesmo, pois deixa de experimentar a força maior do amor, que jamais trairá as causas d’Ele.

Luiz Cassio

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