Em sua vida pública, Jesus jamais batizou alguém. Mas seus discípulos retomaram o rito quase que imediatamente após a ressurreição. As primeiras comunidades não eram orientadas apenas pela história de Jesus, mas pela vivência da prática do Reino anunciado por Ele. A “boa nova” é a esperança do mundo oprimido e sem esperanças. E surge não como um horizonte longínquo ou espiritual ou fora da história. A esperança de Jesus é o presente que repercute e questiona esse presente. É uma esperança ativa, dinâmica, repleta da graça e da presença de Deus que quer uma mudança no mundo e mostra ao homem, por meio de Jesus, que essa mudança é possível.
A figura do profeta João Batista tem sido constantemente objeto de uma leitura “cristã”, como a do precursor e aquele que anuncia Jesus (Jo 1,19-34; Mt 3,11ss; At 13, 24ss). Mas essa interpretação, se limitada a ela, pode desvirtuar a força histórica de João e, com isso, impedir que o anúncio do Reino por Jesus seja associado ao seu real contexto histórico.
De acordo com os Evangelhos, João Batista desenvolveu a sua pregação nas proximidades do rio Jordão, onde Jesus foi batizado. Jordão significa ‘aquele que desce’ ou também ‘lugar onde se desce’. O rio deságua no Mar Morto. Sem dúvidas, o ato de lavar culpas e pecados, numa água que se direciona para um mar onde não há vida, é significativo para a mensagem do Batista. O batismo cristão surge de um grupo liderado por João, um movimento profético que pregava a aproximação do tempo do julgamento de Deus (Mt 3,7-10; Lc 3,7-9). Era o “Juízo de Deus”, por vezes confundido com “Reino de Deus” que se aproximava e convidava a todos à penitência e à conversão. João dá uma resposta à expectativa do povo no contexto histórico vivido, ainda que inesperada, por causa do vigor de sua ameaça: “O machado já está sobre a raiz das árvores” (Lc 3,9). Para ele, Deus se aproxima escatologicamente como julgador e na sua ira iminente (SOBRINO, 1998, p. 114). Seu ritual de batismo não tinha qualquer relação com os ritos judaicos de iniciação ou a intenção de substituir práticas de circuncisão.
O batismo na água estava ligado aos ritos de purificação das tradições dos judeus e, mais especificamente, dos essênios, mas João acrescentava um elemento novo a esse rito das tradições, a conversão. A conversão não fazia parte dos ritos judaicos, purificar-se não era converter-se, mas lavar-se. As purificações judaicas eram apenas fruto de um medo de doenças e contaminações, mas não atingia o interior da pessoa, seu comportamento e sua consciência (MAZZAROLO, 2004, p. 56).
João desafia abandonando a própria tradição familiar e religiosa de seu tempo. Como filho primogênito do sacerdote Zacarias, estava destinado ao serviço do Templo. A tradição o fazia sacerdote por direito (Ex 13,11-16; 22,28-30; Dt 26,1-2). Mas, pelo contrário, prega no deserto a penitência e a conversão. Opta pelo deserto e por uma vida ascética como opção revolucionária, o que leva a perceber a sua posição contrária à política do Templo. Os evangelhos também evidenciam sua vida de pobreza e austeridade ao renunciar aos privilégios sacerdotais que, nesse contexto histórico, também levava a privilégios sociais e políticos. A pregação de João é dura (Lc 3,7-9) e elimina qualquer tipo de segurança que a pertença ao povo de Israel ou a prática da circuncisão lhes garantisse. Com isso, ele condena radicalmente o culto do Templo e as observações ritualísticas judaicas. Somente um arrependimento sincero e o batismo são o caminho a ser seguido. Para João, a história acabou e não resta mais que a ação de alguém “mais forte” (Mc 1,7; Mt 3,11; Lc 3,15) que está para chegar. Por essa razão, João é para a teologia cristã, a conclusão do Antigo Testamento. No entanto, entre a multidão que ia até ele para receber o batismo (Lc 3, 12-14) encontravam-se publicanos e soldados. Isto porque, o batismo que procuravam não era apenas água sobre a cabeça, mas queriam uma mudança de vida.
A noção de escatologia como um ‘final dos tempos’ não foi seguramente iniciada com João Batista. Ela vinha desde os tempos proféticos, quando a esperança do povo, humilhado e tornado escravo em terra estrangeira, o fazia crer num novo começo para Israel, em que só os fiéis à lei, os justos, seriam salvos. O povo, desiludido pelos percalços históricos, via o presente como algo negativo, que necessariamente tinha que ser destruído para dar lugar a uma nova criação de Deus. O mundo deve nascer novamente, como algo novo. A morte deste mundo, pecador e ofensivo a Deus, para o surgimento de outro totalmente novo, assegura a existência da criação. A continuidade entre “este mundo” e o “mundo que virá”, a passagem de um mundo para o outro é característico da apocalíptica. Essa visão apocalíptica tem como fonte e origem as concepções da cosmologia persa. A sociedade judaica, ainda sob o impacto do helenismo, e com o pano de fundo das subsequentes crises históricas, culturais e religiosas, substitui sua concepção de esperança pelo modelo de história e de teologia dos “Apocalipses”. Este surge pela primeira vez no livro de Daniel, entre 168-164 a.C., como uma peça literária de resistência escrita na época da luta dos Macabeus contra a helenização no século II a.C. Narra uma série de dados que acabam mostrando que a finalidade do livro não é histórica. É um escrito da resistência judaica, no duro período da perseguição selêucida. Daniel está preocupado em mostrar ao povo que é preciso ter uma fé inabalável em Javé, porque, por pior que seja a situação, os judeus sairão vitoriosos e engrandecidos. O que entra em jogo nessa literatura é o confronto do reino de Deus versus Império, ou seja, uma reflexão sobre as formas pelas quais entra a morte no mundo e o modo que Deus usa para fazer renascer a vida em seu povo. A literatura apocalíptica é uma literatura política. Mas não para dar origem aos zelotas, que organizaram um movimento revolucionário, nem no sentido dado pelos Essênios, que se retiraram para uma sociedade alternativa, mas no sentido de um desejo do povo em prosseguir sua caminhada sem se sentir intimidado pelo tamanho e poder do invasor, animado pela fé na intervenção divina que faz justiça aos pequenos e humildes.
O batismo de Jesus (Lc 3,3; Mc 1,4; Mt 3,13) ocorre em um contexto de opressão e dominação. Tal passagem não é criação da Igreja primitiva, antes seria causa de constrangimento colocar Jesus entre os pecadores: “Como uma Igreja primitiva que proclama Jesus ‘Senhor’ pôde inventar uma cena tão violentamente em contraste com a sua fé? Diga-se o mesmo da tríplice tentação, da agonia, da morte na cruz” (LATOURELLE, 1998, p. 191). Também há evidências históricas de que Jesus participava do grupo do Batista. Ao menos há indícios de que a relação entre ambos não era apenas superficial como se percebe nos elogios de Jesus a João, chamado por Ele “o maior dos profetas” e “o maior dos nascidos de mulher” (Lc 7,26ss; Mt 11,18-19). Por ocasião da condenação de João Batista por Herodes, observa Mateus que “ao ser informado da morte de João, Jesus partiu dali e foi de barco para um lugar deserto, a sós” (Mt 14,13). Antes, Mateus já tinha dito que “quando soube que João tinha sido preso, Jesus retirou-se para a Galiléia” (Mt 4,12). Essas alusões discretas revelam, não apenas o impacto que essa prisão causou em Jesus – o que o leva para um isolamento para orar – mas a tensão política em que ambos viviam.
Mas, em sua vida pública Jesus jamais batizou alguém. Ao primeiro momento, isso pode soar estranho. Principalmente, dado o fato de seus discípulos retomarem o rito quase que imediatamente após a ressurreição. As primeiras comunidades não eram orientadas apenas pela história de Jesus, mas pela vivência da prática do Reino anunciado por Jesus. Isso é percebido no mandato oficial do Ressuscitado, no qual o evangelista Mateus termina seu evangelho: “Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi” (Mt 28,19-20). O batismo de Jesus é sinal de Sua aprovação quanto à mensagem da vinda próxima do Reino de Deus. Mas, seguramente a mensagem de julgamento como convite à conversão, não fazia parte de Sua pregação. Jesus anuncia o Reino de Deus, não como uma vinda após uma conversão e um “arrependei-vos”, mas como graça que Deus concede a todos os homens de boa vontade, mediante a fé. O julgamento, como condição necessária à pertença do Reino de Deus, explica as penitências, os jejuns e o afastamento do mundo (deserto), que são pregados pelo Batista. Práticas que não estão presentes na vida de Jesus. Contrariamente, Jesus não se afastava do mundo, por considerá-lo impuro e indigno de Deus. Mas, caminhava por esse mesmo mundo, rumando de aldeia em aldeia, pregando a Boa Nova, estimulando a fé em Deus e o amor entre os homens. A vida itinerante de Jesus é um traço marcante na leitura dos evangelhos. Naquele tempo, um homem só deixava a família para constituir outra família ou quando perdia os bens e se transformava em mendigo. Jesus optou por essa vida para ir ao encontro das pessoas, para anunciar o Reino. Andarilho, manifestou sua humanidade na maneira de relacionar-se com as pessoas, especialmente com os pobres, enfermos, pecadores, marginalizados que sempre clamaram por Javé. A Teologia da Libertação utiliza-se de inúmeros sinais dessa condescendência e bondade do Jesus histórico. Seus milagres sempre estiveram ligados à inserção dos excluídos na sociedade, dos homens e mulheres de uma comunidade definida, excluídos pela lei por “impurezas” das quais não tinham culpa. Esses homens, como os tantos excluídos de hoje, sempre se aproximaram de Jesus para que lhes curasse os males, que podem ser chamados de cegueira, de lepra, mas que hoje são mais facilmente definidos como infelicidade (Mt 9,36). Jesus não espera que a conversão trouxesse os homens para Deus, mas vai ao encontro deles e lhes oferece essa possibilidade de conversão, como mudança do próprio ser e de todo um mundo interior que termina definitivamente para dar lugar a outro ser, totalmente novo. Nesse sentido, conversão é processo de crise profunda e “pode ser expresso pelas imagens de um fim de mundo” (BLANK, p. 308). Paulo descreve esse processo como: “[…] A criação inteira geme e sofre em conjunto as dores de parto, até o presente” (Rm 8,22).
Jesus mostra que o seu messianismo está relacionado com o serviço a Deus. Seu messianismo não é monárquico. É a essa prática que o evangelista João se refere como “batismo pelo Espírito” realizado por Jesus (Jo 1,19-28). Jesus, portanto, nunca viveu apocalipticamente, mas messianicamente. A pregação de Jesus e o testemunho do cristianismo primitivo se expressam no plano horizontal do tempo humano. Não usava o castigo como forma pedagógica para convencer as pessoas. Nos seus discursos escatológicos, é possível um novo mundo sem a sua prévia destruição.
A concepção apocalíptica de João Batista não vê esta possibilidade: a história é uma luta entre o bem e o mal, dualistamente. O fim é um juízo de Deus, no qual ocorrerá o castigo dos ímpios e a destruição da história. É uma concepção de medo e de vingança! Totalmente afastada do amor e da prática missionária de Jesus, como convite à conversão de vida numa constante busca ao “outro”, como pastor que busca incessantemente as ovelhas perdidas. Enquanto João Batista esperava uma intervenção divina do tipo apocalíptico, no mundo, Jesus tinha uma compreensão histórica.
Jesus supera a escatologia alienante do passado, não seguindo nem com seu discurso, nem continuando com a prática do batismo de João, e a substitui por uma escatologia transformadora do mundo: uma esperança escatológica que se concretiza na necessidade de mudança social. A prática do agir de Jesus é a esperança escatológica em Deus que se torna motor para um agir transformador, que corresponde aos valores do Reino de Deus.
LATOURELLE, R. Jesus existiu? Aparecida: Editora Santuário, 1998.
MAZZAROLO, I. Lucas, a antropologia da salvação. Rio de Janeiro: Mazzarolo Editor, 2004.
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