Teólogo Ms. Dr. Sergio Alejandro Ribaric’, professor e coordenador de Teologia da Faculdade São Bento e de Marialogia no ITESP.

A figura de Jesus, nestes dois mil anos que nos separam de Sua presença física, tem sido um empecilho no relacionamento entre cristãos e judeus. Muitas vezes, uma fonte de atrito que acabou causando ressentimento e exclusão mútua.

A partir da experiência de Jesus no mundo, o cristianismo posterior passa a ser co-herdeiro do grandioso legado espiritual dos judeus. Afinal Jesus era judeu e nascido de mãe judia. Circuncidado de acordo com a lei judaica (Lucas 2,21) sempre viveu como um judeu fiel às suas origens. Seus belos ensinamentos que até hoje encantam cristãos e não cristãos, derivam de ensinamentos e das tradições judaicas e de suas leis.  Ele era chamado de “rabi” (João 1,49; 9,2) e em vários momentos dos evangelhos vemos Jesus frequentando as sinagogas e o Templo de Jerusalém.

É nossa obrigação e responsabilidade evitar que as divergências posteriores à Sua vida, e que tomaram lugar em tantos momentos da história, resultem de um esquecimento das origens judaicas do cristianismo.

O judeu Jesus

Em sua vida pública, Jesus participava de discussões e debates acerca da interpretação da lei e dos preceitos judaicos, como era comum entre judeus dessa época. Jamais pregou a desobediência às leis mosaicas contidas na Torá, a Bíblia hebraica. Aliás, sempre demostrou ser um profundo conhecedor da Torá.  Por exemplo, em Marcos 12,28-31, ao ser questionado sobre qual é o principal mandamento, Ele responde de acordo à Bíblia hebraica (Dt 6,4-5): “Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu pensamento e com toda a tua força“.  Essa afirmação de fé, conhecida como Shenzá, era na época — e é até hoje — repetida duas vezes por dia por todo judeu. Ao Shemá, Jesus acrescenta um segundo mandamento, que ele considera “igualmente importante” e também extraído da Torá: “Amarás o próximo como a ti mesmo” (Levítico 19,18).

Até quando Jesus ensina o “Pai Nosso” aos seus discípulos (Mateus 6,9-13) encontramos semelhanças com as Escrituras judaicas:

1.”Pai nosso que estás no céu“, era uma invocação tradicional nas preces e bênçãos judaicas;

  1. Seja santificado Teu nome“, faz parte do Kadish, a principal oração judaica de louvor a Deus;
  2. Protege-nos contra a tentação” faz parte das orações matutinas judaicas.

Contrariamente ao que notamos muitas vezes em alguns textos cristãos, chamar a Deus de “Pai” (termo aramaico Aba), não foi uma novidade usada por Jesus, como por exemplo em momentos de angústia (Getsêmani) ou de oração.

No conhecido Sermão da Montanha, Jesus também utiliza de alguns versículos dos Salmos , como por exemplo: “Mas os mansos possuirão a terra“, Sl 37,11. O lindíssimo Sermão é uma “ode” de seu amor à Torá: “Não penseis que vim abolir a Lei ou os Profetas: não vim abolir, mas cumprir. (…) Aquele que transgredir um só desses mandamentos, por menor que seja, e ensinar os homens a fazer o mesmo será declarado o menor no Reino dos céus. Mas aquele que os observar e os ensinar, será declarado grande no Reino dos céus” (Mateus 5,17-19).

E não podemos deixar de perceber que o imperativo de imitar a perfeição do Criador (“Sereis perfeitos, como é perfeito vosso Pai celeste“, Mateus 5:48) é muito semelhante ao mandamento em Levítico 11,45 e 19,2 (“Sereis santos, pois Eu sou santo”).

Fariseus

Outro fato importante que produziu entre os católicos uma visão distorcida do judaísmo foi a imagem negativa dos fariseus, encontrada nos Evangelhos.   Na verdade, os constantes debates de Jesus com os fariseus são um sinal de que Ele os levava a sério e respeitava o conhecimento desses sobre a Torá. Suas críticas eram dirigidas aos Saduceus, a aristocracia judaica e não aos fariseus. Afinal, foi com os fariseus que Jesus aprendeu a “regra de ouro” (“Tudo aquilo que quereis que os homens façam a vós, fazei-o vós mesmos a eles. Esta é a Lei e os Profetas“, Mateus 7,12) e deles vem a crença na ressurreição. Portanto, os conflitos e controvérsias relatados no Novo Testamento devem ser vistos como discussões entre irmãos e não como disputas entre inimigos.

O Talmud fundamenta o fato de que, na época de Jesus e nas décadas seguintes, o farisaísmo estava dividido entre duas principais escolas de pensamento, as de Hillel e Shammai. Em muitos casos, Jesus seguia as interpretações mais flexíveis de Hillel, cujas opiniões acabariam prevalecendo no Talmud, e posicionava-se contra a rigidez e o legalismo de Shammai. É possível, portanto, que muitos dos conflitos entre Jesus e “os fariseus” descritos nos Evangelhos tenham sido, na verdade, disputas entre os próprios fariseus, com Jesus tomando o partido de um lado.

Ao ressaltar o que há de comum entre os ensinamentos de Jesus e os preceitos judaicos, percebe-se facilmente quão falsa é a tão propalada tese de que Jesus e os judeus de sua época eram adversários ideológicos. Não o eram e nem podiam ser, pois seguiam a mesma Bíblia. O Papa João Paulo II, em um encontro com os membros da Pontifícia Comissão Bíblica em 11 de abril de 1997 disse: “Não se pode exprimir de maneira plena o mistério de Cristo sem recorrer ao Antigo Testamento. A identidade humana de Jesus define-se a partir do seu vínculo com o povo de Israel.”

Uma das principais divergências teológicas entre cristãos e judeus é a questão de Jesus ser, ou não, o Redentor ou Messias. Ideias messiânicas já existiam antes do nascimento de Jesus e os judeus aguardavam fervorosamente a chegada do Messias à Terra, em cumprimento da profecia bíblica. Os primeiros discípulos de Jesus, acreditando que ele fosse o Messias prometido pelos profetas, acrescentaram a palavra Cristo ao seu nome (Christos, em grego, é a tradução do termo hebraico Mashiach, Messias, “o ungido”) e essa crença tornou-se o principal dogma do cristianismo.

Os judeus não reconhecem Jesus e nenhum outro como Messias, simplesmente porque percebem que as profecias messiânicas nas quais sua fé deposita suas esperanças não se concretizaram. A opressão não terminou, a guerra não acabou, o ódio não cessou, a miséria não findou…

Antissemitismo

O antissemitismo já existia bem antes da época de Jesus. Por volta do ano 450 aC, quando o primeiro-ministro da Pérsia, Haman, quis justificar seu plano de matar todos os judeus do império, ele alegou: “Há em todas as províncias do reino um povo disperso e separado dos outros; suas leis são diferentes das dos demais povos” (Ester 3,8).

Este, e apenas este, foi o “crime” que os judeus cometeram: eles eram diferentes!

Mas, o progresso alcançado nas relações católico-judaicas desde o Segundo Concílio Vaticano, são inegáveis e as barreiras de desconfiança mútua foram gradativamente se dissolvendo. De 1965 até hoje estabeleceram-se mais contatos positivos do que em todos os 1900 anos anteriores. Toda uma geração de jovens está crescendo sem ter sido exposta ao ódio que anteriormente envenenava as relações judaico-cristãs. Existe hoje a busca de compreensão mútua e a disposição de dialogar.

Nas palavras do inesquecível rabino Henry Sobel: “Creio que é assim que Jesus gostaria de ser lembrado: não como um pomo de discórdia, e sim como um semeador da paz entre cristãos e judeus.”

 

NOTA DO EDITORIA: Por lapso de nossa parte, algumas digitações não foram revisadas e essa ausência de revisão gerou alguns cochilos. A Editoria se desculpa com o autor do artigo e com os demais leitores. Lembrando o querido Papa São João Paulo II: “quando eu errar, corrija-me.”