Segunda feira da segunda semana da quaresma.
Seguimos na nossa caminhada dos quarenta dias que nos separam da Páscoa do Messias, Verbo encarnado em nossa realidade humana. Tempo oportuno para fazermos uma revisão de vida, à luz do Evangelho, para melhor adequar a nossa vida ao Projeto de Deus revelado em e por Jesus. Seguir na mesma pegada d’Ele requer um compromisso inadiável de nos empenharmos por fazer acontecer entre nós o Reino sonhado por Deus para os seus. Supõe mudança de vida, de atitude, no modo de pensar e agir neste mundo para que possamos assim, sermos seguidores de Jesus de Nazaré.
Na quaresma sempre fazemos alusão ao caminho percorrido pelo povo hebreu, libertando-se da escravidão no Egito, em busca da Terra Prometida. Quarenta anos percorreu aquele povo em meio ao deserto, passando por todas as formas de provações. Caindo e levantando, em busca do sonho maior de ter a sua terra. Alguns exegetas afirmam que Moisés foi estratégico ao entrar deserto afora, pois acreditava ele, que era necessário morrer uma geração, acostumada que estava com o regime escravagista, que não seria capaz de viver uma realidade de plena liberdade, sem reproduzir aquele sistema de 400 anos de escravidão (cerca dos séculos XIII e XII a. C.).
Tal estratégia custou ao líder israelita o sonho de adentrar a Terra Prometida, uma vez que morreu antes de lá chegar.
Rezei nesta manhã fazendo o reencontro com os meus anfitriões da natureza. Uma dezena deles em oração comigo, acordando o dia preguiçosamente. Salmodiamos o Deus Criador em forma de cânticos. Cada um deles na sua toada e eu soletrando na memória a letra da Oração de São Francisco de Assis, que tinha tudo a ver com aquele momento. Tendo como testemunhas apenas o sol, despontando sobre o Araguaia, e a brisa suave do vento, fazendo as minhas companhias saltitarem de galho em galho. Deus mesmo se fazendo presente neles, mostrando, a sintonia perfeita que há entre a nossa mãe natureza e a humanidade, apesar de tantos maus tratos promovidos por alguns dos nossos semelhantes. Bem fez o “Povorello de Assis” que soube captar magistralmente esta sintonia na sua convivência com os animais, chamando-os todos de irmãos seus.
https://www.youtube.com/watch?v=99_GuzIkiUM
Certamente São Francisco de Assis, ao escrever esta bela canção, tenha se inspirado no texto do evangelho de hoje (Lc 6,36-38). Apenas três versículos que faz uma síntese perfeita de como deve ser a conduta do cristão na convivência de suas relações diárias com as demais pessoas. Numa sociedade extremamente desigual e marcada pelos conflitos de interesses, onde o ter se sobrepõe ao ser; a gratuidade dá lugar à ganância, ao lucro e a avidez, onde somos desafiados a agir com o sentimento nobre da misericórdia. Palavra de origem latina, formada pela junção de “miserere” (ter compaixão), e “cordis” (coração). “compartir com o coração”, ou seja, ter em nós a capacidade de sentir aquilo que a outra pessoa está sentindo, aproximando os nossos sentimentos dos sentimentos de outrem. Exercitar em nós a capacidade de sermos solidários com as pessoas, sobretudo aquelas que estão sofrendo.
A misericórdia vem sempre acompanhada de outros dons: perdão, acolhida, generosidade, ternura e amorosidade. Todos estes dons encontram-se na pessoa de Jesus, que veio também nos revelar a face de um Deus extremamente misericordioso para com os seus. Um Deus sempre pronto a perdoar, o fazendo na gratuidade do seu jeito de ser, que toma a iniciativa de vir até nós, mesmo que não sejamos merecedores desta graça divina. A amorosidade e a ternura de um Deus que nos trata como filhos e filhas diletos seus, apesar das nossas costumeiras infidelidades. Se Deus é assim para conosco, significa que também devemos ser desta forma para com as demais pessoas. Amorosidade em Deus e também no seu Filho, ao qual devemos ser com Ele da mesma forma como São Paulo já nos dizia: “Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus” (Fil 2,5).
Gratuidade nas relações, eis o nosso maior desafio de cristãos seguidores de Jesus. A vida em sociedade é feita de relacionamentos de interesses e reciprocidade, que geram lucro, poder e prestígio. A proposta feita pelo Evangelho vem revolucionar o campo das relações humanas, mostrando que, numa sociedade justa e fraterna, as relações devem ser gratuitas, à semelhança do amor misericordioso do Pai para conosco. Não julgar para não sermos julgados. Deus nos julga com a mesma medida que usamos para com as outras pessoas. O rigor do nosso julgamento sobre nós mesmos e também sobre o outro, mostra que desconhecemos a nossa própria fragilidade e a nossa condição de pecadores diante do Deus da vida plena. Que sejamos gratuitos na forma de exercer a nossa amorosidade.
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