Quarta feira da Primeira Semana da Quaresma. Estamos apenas no início de nossa caminhada pelo “deserto da vida”, enfrentando os desafios e dificuldades inerentes à caminhada. O tempo é de revisão de vida. Avaliar o nosso jeito de ser, pensar e viver a nossa fé à luz da Palavra de Deus. Seguir os passos do Nazareno, é entrar em sintonia com o seu Projeto do Reino, já que Ele é o caminho, a verdade e a vida. (Jo 14,6) Converter para seguir os seus passos. Converter para assumir a vida humana como Dom e Graça de Deus, que nos projetou para a plenitude. Nascemos para sermos felizes, esta é a verdade maior.
Uma quarta feira em que o sol não deu as caras aqui pelas nossas bandas. Ficou dormindo e deixou que a chuvinha fina e intermitente anunciasse a chegada do novo dia. Verão, caminhando para o outono, com cara de inverno, de uma temperatura bem amena. Os adeptos da cama até mais tarde, certamente agradeceram. Não é o meu caso. Às 05h00min da matina, já estava eu contemplando de minha varanda os pingos de chuva escorrendo pelo telhado. Inevitável não pensar numa das canções de nossas comunidades há tempos atrás: “Para mim a chuva no telhado. É cantiga de ninar. Mas o pobre meu Irmão. Para ele a chuva fria. Vai entrando em seu barraco. E faz lama pelo chão”. Alegrias de uns, tristezas de outros.
Rezei pensando no nosso jeito de falar, expressar, e às vezes desdizer, já que na presente data, comemoramos o Dia Internacional da Língua Materna. Este dia foi proclamado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 1999, com o objetivo de proteger e salvaguardar as muitas línguas faladas em todo o planeta. Estima-se que sejam em torno mais de 7000 línguas em todo o globo terrestre, se bem que, segundo os estudiosos, metade destas, corre o risco de vir a desaparecer por completo. Muitas já não existem mais, como é o caso das línguas maternas de alguns dos povos originários.
Convivendo com estes povos há mais de trinta anos, muito aprendi com suas línguas maternas. O Povo Xavante (A’uwé – gente), por exemplo, tem a sua língua materna ligada ao conjunto etnolinguístico, conhecido na literatura antropológica como Acuen, pertencente à família linguística Jê, do tronco Macro-Jê. Lembrando que o tronco linguístico é um conjunto de línguas que têm a mesma origem: uma língua mais antiga, que não é mais falada. As línguas do tronco linguístico Macro-Jê, agrupam-se em torno de pelo menos nove famílias e somam trinta e oito línguas e variantes faladas atualmente no território nacional. Há toda uma riqueza linguística, passada de geração a geração pelo processo da oralidade, numa transmissão de saberes ancestrais, já que muitos destes povos são ágrafos, ou seja, não possui representação escrita.
O ser humano é bondoso em sua essência. Faz parte da essência do humano sermos bondosos. A maldade não vem impregnada em nosso DNA. Ao nos criar, Deus infundiu em nosso coração a bondade, a benevolência, a generosidade, a misericórdia, a clemência, a piedade, a nobreza, a compaixão. Bondade de nosso ser humanitário a que fomos criados, imagem e semelhança d’Ele. Toda criança, ao nascer, traz em suas entranhas todos estes valores. Entretanto, com o nosso processo de desumanização, na trajetória que vamos traçando, vamos deixando pelo caminho tais dons/virtudes. Foi assim também no tempo de Jesus, ao ponto d’Ele chegar a seguinte conclusão: “Esta geração é uma geração má”. (Lc 11,29)
Tudo porque, mesmo estando caminhando lado a lado com Ele, aqueles que o rodeavam, não acreditavam n’Ele, apesar de verem as suas ações libertadoras acontecendo ali diante dos olhos deles. Mesmo assim, queriam que Ele lhes desse um sinal de que, fosse Ele o Filho de Deus enviado. Todavia, Jesus quer que eles entendam que não é um sinal maravilhoso que levará as pessoas à conversão, e sim a adesão consciente e decisiva ao projeto da nova história, manifestado na palavra d’Ele. Os sinais estão acontecendo todos os dias diante dos nossos olhos, mas com a nossa cegueira mecanicista, não os enxergamos. Deus se manifesta a cada momento em nossas vidas, mas nós não enxergamos, ou não queremos ver de forma alguma. A cada dia, a cada momento, somos testados, mas com a nossa fé mediana, fazemos pouco caso sobre a manifestação de Deus nos sinais dos tempos.
A desumanização nos levou ao ceticismo, a indiferença e a omissão, diante da vida do irmão que padece. Deixamo-nos desumanizar na medida em que perdemos os valores éticos e morais, da própria sensibilidade inerente ao humano. Enquanto queremos encontrar um Deus nas alturas, de uma fé sem compromisso, Ele está trafegando no corpo do pobre marginalizado a beira do caminho. O sinal que Jesus quer nos transmitir no dia de hoje é a sua presença naqueles que sofrem e que Ele nos alertara numa das passagens do Evangelho de Mateus: ‘O que fizerdes a um destes meus irmãos mais pequeninos é a mim que o fazeis’ (Mt 25,40)
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