Quinta feira da segunda semana da quaresma.
Quando criança, esta palavra assustava-me, dada a concepção que se tinha deste tempo litúrgico, fruto de uma catequese da Igreja Católica, que provocava nas pessoas o temor de um Deus que estava sempre pronto para castigar aos que erravam. Em minha cabeça de criança, vinha sempre a imagem dos anjos da morte, que estavam soltos no tempo da quaresma, para acertar as contas com os errantes e pecadores. Só mais tarde é que me divorciei destas concepções macabras, que povoavam as mentes dos mais antigos naquela época. Confesso que foi uma verdadeira libertação para mim, desvencilhar-me de tais ideias.
Quaresma nada mais é que este tempo propício para desenvolver em nós um processo de conversão. Conversão esta que não acontece como num passe de mágica, mas que vai evoluindo na medida em que vamos caminhando rumo aos valores do Evangelho, e nos deixando seduzir pela proposta de Jesus. Ser cristão é fazer adesão ao Projeto do Reino que Jesus veio nos trazer. Significa mais do que uma simples vivência dogmática dos sacramentos na comunidade eclesial. Os sacramentos são o ponto de partida para o fortalecimento da experiência de fé. O ponto de chegada é a vivência concreta na sociedade onde, com as nossas ações cotidianas, vamos edificando o Reino de paz, de justiça, de fraternidade e igualdade entre todos os irmãos e irmãs.
Este mundo que estamos vivendo na atualidade, não se coaduna com a proposta do Reino anunciada por Jesus e querida por Deus para os seus. Diferentemente do Reino, vivemos numa sociedade marcada pela mentira, pela violência, pela enganação e, sobretudo, pela desigualdade social. A maldade está presente em cada esquina, como, por exemplo, na ação do governante-mor que sancionou uma lei (Lei Complementar 191/22) que, literalmente, rouba o tempo de serviço dos profissionais das redes públicas de educação de todo o País, no período de maio de 2020 a dezembro de 2021, na fase mais crítica da pandemia, quando tais profissionais tiveram que reinventar-se para dar conta de realizar as suas atividades docentes. Pura maldade!
Vivemos a realidade nua e crua da sociedade desigual criada pelos homens, nos fazendo lembrar a obra de Santo Agostinho, quando ele classifica as duas realidades chamando-as de: “cidade terrestre” e “cidade celeste”: “O amor de si levado até o desprezo de Deus gera a cidade terrena; o amor de Deus levado até o desprezo de si gera a cidade celeste… os cidadãos da cidade terrena são dominados por uma estúpida ambição de predomínio que os induz a subjugar os outros; os cidadãos da cidade celeste se oferecem um ao outro em serviço e espírito de caridade e respeitam docilmente os deveres da disciplina social”. Sem dúvida, um convite a leitura da obra agostiniana (“Dei Civitate Dei” traduzindo literalmente “A Cidade de Deus”), para perceber que o bispo de Hipona tinha razões de sobra na sua oportuna reflexão.
Reflexão que também fazemos hoje à luz da Palavra de Deus, que nos é oportunizada pelo Evangelho da Comunidade Lucana (Lc 16,19-31). Somente em Lucas aparece este trecho de hoje. Numa narrativa peculiar deste evangelista, Jesus está mais uma vez às voltas com os incorrigíveis fariseus. Eita povinho difícil! Na realidade, Jesus está ensinando os seus seguidores e seguidoras, tendo como referência contraditória, o grupo dos fariseus. Nesta ocasião, Ele está elucidando a incoerência e contradição que se escondem por detrás de uma sociedade que se estrutura na base da concentração da riqueza, da posse dos bens e do poder nas mãos de uns poucos (elite); e as suas consequências com a criação dos pobres e explorados que não tem minimamente o necessário para viver com dignidade (Lázaro). Como a predileção de Deus é pelos pequenos, a própria palavra Lázaro quer dizer: “Deus socorreu”, “Deus ajudou”.
Jesus que faz uso de toda uma pedagogia, por intermédio de parábolas, para que assim os seus ouvintes tivessem uma noção exata daquilo que Ele gostaria de transmitir. Ele vai ao cerne da questão, fazendo uma crítica aquele tipo de sociedade classista, onde o rico vivia na opulência, no luxo e na riqueza, enquanto o pobre morria na miséria, com fome e desprezado. Tudo isso com a conivência dos líderes religiosos da época que, com suas atitudes, defendia o “status quo” dos privilegiados. Diante deste contexto, Jesus apela à conversão. Mudança radical de vida, de atitude e modo de ser, pensar e viver, diante desta realidade desigual. Só há um jeito de entrar na dinâmica do Reino: o rico precisa se converter. A conclusão da parábola é clara: é preciso passar por uma profunda transformação social, para criar uma sociedade onde haja partilha de bens entre todos. Converter para viver na plenitude da vida como dom maior de Deus.
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