Embora desde pelo menos o século XVIII, vários autores critiquem a adequação da teologia como uma disciplina acadêmica, negando-lhe inclusive a categoria de ciência, a teologia, enquanto matéria de estudo acadêmico, observa as rígidas normas das demais ciências. Normas que posicionam como a Teologia se coloca no diálogo com a sociedade, o mundo, as artes, as demais ciências. Inclusive na questão da linguagem, que na teologia é muito própria e nem sempre familiar às demais ciências. A teologia tem um discurso racional, diferente de outros discursos religiosos que podem ser simplesmente emocionais ou de outra ordem. A Teologia parte da fé e busca sua compreensão, como já enfatizada por Agostinho e Anselmo de Cantuária (Fides quaerens intellectum). E creio que aqui reside sua importância: ajudar os crentes a entender melhor o que creem. Estudos teológicos envolvem o estudo de práticas religiosas, históricas ou contemporâneas, ou das ideias dessas tradições usando ferramentas e estruturas intelectuais. Estuda a revelação de Deus na história, vista a partir da fé e rastreia os elementos nessa história interpretando-os e alinhavando-os numa “história” de Deus. A ciência teológica compreende em si dois campos diferentes de conhecimento; o conhecimento da razão em si, e o conhecimento do dado revelado. O conhecimento revelado é aceito pela fé e o conhecimento da razão torna tal fé inteligível a todos.
Mariologia
A Mariologia entra naquilo que chamamos Teologia Sistemática. Uma das ramificações internas dentro da teologia e que engloba também a Cristologia, a Pneumatologia, Eclesiologia, Antropologia teológica, a Escatologia e a Trindade. É talvez, a Sistemática, a parte da ciência teológica que mais exija rigor e definições precisas. Mas como escrever teologia sobre Maria? Como adentrar nesses alinhavos e emaranhar-se em estudos exegéticos e linguísticos frios sobre um personagem, que acima de tudo, nos desperta devoção, amor. Amor por ser mãe. Amor por ser mãe de quem foi! E amor pela imensa compaixão que sentimos dessa mulher aos pés da cruz. Debruçar-se no estudo do personagem Maria, compreender seu lugar na história, sua missão e sua importância na história da redenção é tarefa do teólogo. Mas como separar esse estudo sem comunicar ao leitor o profundo amor e devoção a essa mulher, onde o próprio teólogo quando ajoelhado, se dirige a ela como Mãe, mãezinha, Socorro nosso…. é tarefa das mais difíceis.
Daí vem o porquê da primeira frase deste prefácio. A enorme dificuldade que o teólogo tem ao escrever, e mesmo lecionar, sobre Maria. Como não se envolver? Como readquirir a frieza científica que esse estudo exige? Em relação a isso, disse uma vez o Santo Padre Francisco: “Se você quiser saber quem é Maria, pergunte aos teólogos; se você quiser amar Maria, pergunte ao povo” referindo-se às devoções marianas a partir da piedade popular expressa por simples gestos de fé, repletos de emoção que carregam em silêncio parte do mistério da Salvação.
A tradição cristã afirma Deus revelando-se na história, no ambiente humano, em situações humanas, no ser humano. Portanto, Maria tem muito a dizer à teologia. Maria é aquela que ajuda a formar Cristo em nós, intercede junto a Deus e ao Espírito Santo para que se possa gerar em nossa vida, uma sempre maior união com Cristo. Essa é uma realidade que salta dessas devoções populares (sensus fidelium) que se iniciaram, certamente, após a ascensão de Jesus, nos primeiros momentos do cristianismo. Pois, como salienta São Luís Maria de Montfort : “Maria é o caminho mais próximo, direto e imediato para encontrar-se com Jesus”. A relevância das definições dogmáticas católicas no âmbito histórico, eclesial e teológico tem como propósito iluminar o processo da passagem do sensus fidelium para a definição dogmática.
Dogmas
O teólogo Clodovis Boff define bem: “Maria antes de ter sido pensada, essa mulher foi amada, louvada e rezada”. Ou em outras palavras, como as devoções populares, nascidas apenas da fé do povo que denominamos Dogmas. Por conseguinte, os dogmas visam a assegurar elementos importantes da fé enquanto tentam responder a problemas das comunidades cristãs num momento determinado da história. O intuito fundamental é esclarecer e reafirmar aspectos da fé que não estão claros e são essenciais para a vida da comunidade: eis a importância teológica dos dogmas. E neste caso específico, dos dogmas marianos. Eles levaram o magistério a discutir e posteriormente a afirmar como verdade, o que denominamos Dogmas. E neste caso específico, dos dogmas marianos.
A Igreja de Jesus Cristo se identifica com Maria: Ela faz parte do inegável conteúdo histórico da obra de Deus para com os homens. É o primeiro sinal da graça divina. Maria foi desde o início da Igreja (lá em Pentecostes) a música suave porem ruidosa e inconfundível que traz à lembrança a fundamentação que o homem encontra em Deus, um Deus que renova sua fidelidade e amor diuturnamente. Essa música de Maria está contida nas badaladas dos sinos de uma Igreja que anuncia Seu Filho como a presença viva e real de Deus no mundo. Por essa razão Maria está intrinsecamente ligada à Igreja desde seu princípio: Ambas apontam para a realidade do pacto entre Deus e os homens, que ainda permanece no anúncio e que ainda não foi cumprido, mas pelo qual se espera.
Em alguns meios acadêmicos corre a ideia de que a teologia quando produzida e estudada com emoção de fiel, espiritual ou devocional demais, perde a sua qualidade e empobrece o teólogo. Embora veja algo de verdade nessa frase…. não posso concordar com sua totalidade. Se é a fé que leva alguém a estudar o fenômeno Deus (e que mais seria?), como separar a motivação inicial da fria linha de estudo teológico?
Em mariologia, como dissemos, esse problema é mais difícil de ser seguido. O teólogo deve se policiar constantemente para não cair na “pieguice” devocional e pessoal. Mas…. Se seguirmos esse raciocínio em busca da qualidade teológica de nossa produção acadêmica, como definiriamos a teologia de Agostinho? onde em cada parágrafo de suas obras se percebe uma pequena ode de amor ao Deus que ele tenta decifrar. Seguindo essa linha de raciocínio, deveríamos chamá-la de teologia de baixa qualidade? E um Bernard de Clairvaux? e mais recentemente, como definiríamos a teologia de von Balthasar? As encíclicas marianas de João Paulo II? para dar apenas alguns exemplos de teologias permeadas de espiritualidade. Para todos eles, teologia e amor, doutrina e devoção, teologia e oração enfim, eram e são a mesma coisa. Suas teologias foram o relato das suas próprias experiências com Deus. Seria possível, sem a sensibilidade embrenhada na interioridade do pensamento teológico, termos chegado à ideia do páthos de Deus? de um Deus que sofre por amor? E com isso, poder ver no pobre, no miserável e em todo homem que sofre a figura do crucificado? Neste ponto relembro das palavras de um Monge trapista, Thomas Merton:
Teologia e espiritualidade não devem ser separadas como categorias que se excluem reciprocamente, como se o misticismo fosse algo somente para mulheres pias e o estudo teológico fosse apenas para os homens práticos, mas não santos. (…) se elas não estão unidas, não há fervor, não há vida e não há um valor espiritual na teologia nem tampouco pode haver substancia, significado e uma orientação segura na vida contemplativa.[1]
Um dogma polêmico: ICM
O contexto histórico da declaração do dogma da imaculada conceição de Maria definido na Bula Papal ineffabilis Deus (1854) era o racionalismo, onde a supremacia da razão enebriava os homens pelo progresso, a liberdade e a felicidade que aparentemente trazia a todos, com as inovadoras conquistas das ciências. Se por um lado essa euforia do mundo os fazia esquecer do poder do pecado e de sua imensa influência sobre o homem e sobre as estruturas da sociedade, que não muito mais tarde culminariam nos graves problemas sociais enfrentados na Europa e denunciados por Leão XIII com sua histórica encíclica Rerum Novarum (1891), por outro, a figura de Maria permite desviar o olhar desse mesmo homem e sociedade, relembrando-os da força da graça redentora, que lhes permite resistir ao pecado e que pode modificar corações e sistemas políticos para que olhem para o homem, com os mesmos olhos do Filho de Maria. As posições e escritos de Sto. Afonso, de estilo “simples e agradável” como já afirmou o Papa Emérito Bento XVI e descritas competentemente nestas páginas, foram decisivas para que a doutrina da Imaculada Conceição fosse proclamada como dogma, em 1854, pelo papa Pio IX (1792-1878). O livro tem o mérito de deixar isso bem claro.
A presença de Maria no discurso teológico atravessa tempos, espaços, culturas e povos para além das referências bíblicas. Esse discurso tem-se modificado ao longo da história do cristianismo, sempre acompanhando o andar do povo de Deus. História esta que testemunhou as inúmeras vezes em que teólogos e estudiosos, entenderam e compreenderam tarde aquilo que a devoção espiritual dos mais simples e humildes já tinha captado. Relembrando que a festa da imaculada era celebrada pelo povo desde o século VIII no oriente e desde o século IX no ocidente, séculos antes da proclamação do dogma. Sem dúvidas, esse caminhar devocional do povo é ditado e guiado pelo Espirito Santo e culmina na adoção pela Igreja de fórmulas dogmáticas, tratados e obras literárias, teológicas ou não.
Cada cristão que se percebe aos pés da cruz do Filho de Deus, sente a presença dolorosa de Sua mãe. Sente o preço monumental dessa salvação e a presença do amor infinito de Deus ao homem, naquele Deus coberto de sangue, pendente do madeiro. Impossível não olhar para Jesus e imaginar que seu último olhar foi direcionado a sua mãe. As escrituras nada dizem sobre isso.
O amor materno o afirma.
“No nome da Theotokos está contido todo o mistério da Salvação”
São João Damasceno
[1] Merton, Thomas. Sementes de contemplação. Apud Awi, Alexandre. Ela é minha mãe. São Paulo, Loyola, 2014, p.18.
Hoje vendo postagens do watts zap me deparo com a Çao e uma lembrança literária:…
Quinta feira da 33ª Semana do Tempo Comum. Estamos nos finalmente do ano litúrgico. Passou…
Quarta feira da 33ª Semana do Tempo Comum. A luta continua! Somos filhos e filhas…
Terça feira da 33ª Semana do Tempo Comum. Já de volta em casa, depois da…
Segunda feira da 33ª Semana do Tempo Comum. Iniciando mais uma semana em nossa trajetória…
33° Domingo do Tempo Comum. Este é o penúltimo Domingo do Tempo Comum. Estamos nos…