Prof. Ms. Dr. Sergio Alejandro Ribaric’. Engenheiro, Teólogo, palestrante e coordenador do curso de Teologia da Faculdade São Bento e professor no ITESP.

Embora desde pelo menos o século XVIII, vários autores critiquem a adequação da teologia como uma disciplina acadêmica, negando-lhe inclusive a categoria de ciência, a teologia, enquanto matéria de estudo acadêmico, observa as rígidas normas das demais ciências. Normas que posicionam como a Teologia se coloca no diálogo com a sociedade, o mundo, as artes, as demais ciências. Inclusive na questão da linguagem, que na teologia é muito própria e nem sempre familiar às demais ciências. A teologia tem um discurso racional, diferente de outros discursos religiosos que podem ser simplesmente emocionais ou de outra ordem. A Teologia parte da fé e busca sua compreensão, como já enfatizada por Agostinho e Anselmo de Cantuária (Fides quaerens intellectum). E creio que aqui reside sua importância: ajudar os crentes a entender melhor o que creem.  Estudos teológicos envolvem o estudo de práticas religiosas, históricas ou contemporâneas, ou das ideias dessas tradições usando ferramentas e estruturas intelectuais. Estuda a revelação de Deus na história, vista a partir da fé e rastreia os elementos nessa história interpretando-os e alinhavando-os numa “história” de Deus. A ciência teológica compreende em si dois campos diferentes de conhecimento; o conhecimento da razão em si, e o conhecimento do dado revelado. O conhecimento revelado é aceito pela fé e o conhecimento da razão torna tal fé inteligível a todos.  

Mariologia

A Mariologia entra naquilo que chamamos Teologia Sistemática. Uma das ramificações internas dentro da teologia e que engloba também a Cristologia, a Pneumatologia, Eclesiologia, Antropologia teológica, a Escatologia e a Trindade. É talvez, a Sistemática, a parte da ciência teológica que mais exija rigor e definições precisas. Mas como escrever teologia sobre Maria? Como adentrar nesses alinhavos e emaranhar-se em estudos exegéticos e linguísticos frios sobre um personagem, que acima de tudo, nos desperta devoção, amor. Amor por ser mãe. Amor por ser mãe de quem foi! E amor pela imensa compaixão que sentimos dessa mulher aos pés da cruz. Debruçar-se no estudo do personagem Maria, compreender seu lugar na história, sua missão e sua importância na história da redenção é tarefa do teólogo. Mas como separar esse estudo sem comunicar ao leitor o profundo amor e devoção a essa mulher, onde o próprio teólogo quando ajoelhado, se dirige a ela como Mãe, mãezinha, Socorro nosso…. é tarefa das mais difíceis.

                Daí vem o porquê da primeira frase deste prefácio. A enorme dificuldade que o teólogo tem ao escrever, e mesmo lecionar, sobre Maria. Como não se envolver? Como readquirir a frieza científica que esse estudo exige? Em relação a isso, disse uma vez o Santo Padre Francisco: “Se você quiser saber quem é Maria, pergunte aos teólogos; se você quiser amar Maria, pergunte ao povo” referindo-se às devoções marianas a partir da piedade popular expressa por simples gestos de fé, repletos de emoção que carregam em silêncio parte do mistério da Salvação.

 A tradição cristã afirma Deus revelando-se na história, no ambiente humano, em situações humanas, no ser humano. Portanto, Maria tem muito a dizer à teologia. Maria é aquela que ajuda a formar Cristo em nós, intercede junto a Deus e ao Espírito Santo para que se possa gerar em nossa vida, uma sempre maior união com Cristo. Essa é uma realidade que salta dessas devoções populares (sensus fidelium) que se iniciaram, certamente, após a ascensão de Jesus, nos primeiros momentos do cristianismo. Pois, como salienta São Luís Maria de Montfort : “Maria é o caminho mais próximo, direto e imediato para encontrar-se com Jesus”.  A relevância das definições dogmáticas católicas no âmbito histórico, eclesial e teológico tem como propósito iluminar o processo da passagem do sensus fidelium para a definição dogmática.

Dogmas

O teólogo Clodovis Boff define bem: “Maria antes de ter sido pensada, essa mulher foi amada, louvada e rezada”. Ou em outras palavras, como as devoções populares, nascidas apenas da fé do povo que denominamos Dogmas. Por conseguinte, os dogmas visam a assegurar elementos importantes da fé enquanto tentam responder a problemas das comunidades cristãs num momento determinado da história. O intuito fundamental é esclarecer e reafirmar aspectos da fé que não estão claros e são essenciais para a vida da comunidade: eis a importância teológica dos dogmas. E neste caso específico, dos dogmas marianos.  Eles levaram o magistério a discutir e posteriormente a afirmar como verdade, o que denominamos Dogmas. E neste caso específico, dos dogmas marianos. 

A Igreja de Jesus Cristo se identifica com Maria: Ela faz parte do inegável conteúdo histórico da obra de Deus para com os homens. É o primeiro sinal da graça divina. Maria foi desde o início da Igreja (lá em Pentecostes) a música suave porem ruidosa e inconfundível que traz à lembrança a fundamentação que o homem encontra em Deus, um Deus que renova sua fidelidade e amor diuturnamente. Essa música de Maria está contida nas badaladas dos sinos de uma Igreja que anuncia Seu Filho como a presença viva e real de Deus no mundo. Por essa razão Maria está intrinsecamente ligada à Igreja desde seu princípio: Ambas apontam para a realidade do pacto entre Deus e os homens, que ainda permanece no anúncio e que ainda não foi cumprido, mas pelo qual se espera.

Em alguns meios acadêmicos corre a ideia de que a teologia quando produzida e estudada com emoção de fiel, espiritual ou devocional demais, perde a sua qualidade e empobrece o teólogo.  Embora veja algo de verdade nessa frase…. não posso concordar com sua totalidade.  Se é a fé que leva alguém a estudar o fenômeno Deus (e que mais seria?), como separar a motivação inicial da fria linha de estudo teológico?

Em mariologia, como dissemos, esse problema é mais difícil de ser seguido. O teólogo deve se policiar constantemente para não cair na “pieguice” devocional e pessoal. Mas….  Se seguirmos esse raciocínio em busca da qualidade teológica de nossa produção acadêmica, como definiriamos a teologia de Agostinho? onde em cada parágrafo de suas obras se percebe uma pequena ode de amor ao Deus que ele tenta decifrar. Seguindo essa linha de raciocínio, deveríamos chamá-la de teologia de baixa qualidade? E um Bernard de Clairvaux? e mais recentemente, como definiríamos a teologia de von Balthasar? As encíclicas marianas de João Paulo II? para dar apenas alguns exemplos de teologias permeadas de espiritualidade. Para todos eles, teologia e amor, doutrina e devoção, teologia e oração enfim, eram e são a mesma coisa. Suas teologias foram o relato das suas próprias experiências com Deus. Seria possível, sem a sensibilidade embrenhada na interioridade do pensamento teológico, termos chegado à ideia do páthos de Deus? de um Deus que sofre por amor?  E com isso, poder ver no pobre, no miserável e em todo homem que sofre a figura do crucificado? Neste ponto relembro das palavras de um Monge trapista, Thomas Merton:

Teologia e espiritualidade não devem ser separadas como categorias que se excluem reciprocamente, como se o misticismo fosse algo somente para mulheres pias e o estudo teológico fosse apenas para os homens práticos, mas não santos. (…) se elas não estão unidas, não há fervor, não há vida e não há um valor espiritual na teologia nem tampouco pode haver substancia, significado e uma orientação segura na vida contemplativa.[1]

Um dogma polêmico: ICM

O contexto histórico da declaração do dogma da imaculada conceição de Maria definido na Bula Papal ineffabilis Deus (1854) era o racionalismo, onde a supremacia da razão enebriava os homens pelo progresso, a liberdade e a felicidade que aparentemente trazia a todos, com as inovadoras conquistas das ciências. Se por um lado essa euforia do mundo os fazia esquecer do poder do pecado e de sua imensa influência sobre o homem e sobre as estruturas da sociedade, que não muito mais tarde culminariam nos graves problemas sociais enfrentados na Europa e denunciados por Leão XIII com sua histórica encíclica Rerum Novarum (1891), por outro, a figura de Maria permite desviar o olhar desse mesmo homem e sociedade, relembrando-os da força da graça redentora, que lhes permite resistir ao pecado e que pode modificar corações e sistemas políticos para que olhem para o homem, com os mesmos olhos do Filho de Maria.  As posições e escritos de Sto. Afonso, de estilo “simples e agradável” como já afirmou o Papa Emérito Bento XVI e descritas competentemente nestas páginas, foram decisivas para que a doutrina da Imaculada Conceição fosse proclamada como dogma, em 1854, pelo papa Pio IX (1792-1878). O livro tem o mérito de deixar isso bem claro.

A presença de Maria no discurso teológico atravessa tempos, espaços, culturas e povos para além das referências bíblicas. Esse discurso tem-se modificado ao longo da história do cristianismo, sempre acompanhando o andar do povo de Deus. História esta que testemunhou as inúmeras vezes em que teólogos e estudiosos, entenderam e compreenderam tarde aquilo que a devoção espiritual dos mais simples e humildes já tinha captado. Relembrando que a festa da imaculada era celebrada pelo povo desde o século VIII no oriente e desde o século IX no ocidente, séculos antes da proclamação do dogma.  Sem dúvidas, esse caminhar devocional do povo é ditado e guiado pelo Espirito Santo e culmina na adoção pela Igreja de fórmulas dogmáticas, tratados e obras literárias, teológicas ou não.

Cada cristão que se percebe aos pés da cruz do Filho de Deus, sente a presença dolorosa de Sua mãe. Sente o preço monumental dessa salvação e a presença do amor infinito de Deus ao homem, naquele Deus coberto de sangue, pendente do madeiro. Impossível não olhar para Jesus e imaginar que seu último olhar foi direcionado a sua mãe. As escrituras nada dizem sobre isso.

O amor materno o afirma.

 

 

No nome da Theotokos está contido todo o mistério da Salvação”

São João Damasceno

[1] Merton, Thomas. Sementes de contemplação. Apud Awi, Alexandre. Ela é minha mãe. São Paulo, Loyola, 2014, p.18.