Terça feira da Quinta Semana do Tempo Comum. A liturgia reserva para hoje em nossas celebrações a Festa de Nossa Senhora de Lourdes. Foi lá no ano de 1858 que houve a Primeira “aparição” da Virgem Maria em Lourdes, na França. Enquanto alguns de nós, sustentam a ideia de “aparição”, outros, como eu, preferem chamar de “visões”. A palavra aparição é muito forte e dá uma imaginação de que a Mãe de Jesus aparece apenas para algumas pessoas privilegiadas, falando diferente daquilo que ela profeticamente falara no seu Magnificat, por exemplo. Como prefiro ficar com a Maria de Nazaré dos Evangelhos, acho mais salutar para a minha fé, acompanhar a vida da mulher guerreira que foi Maria, como discípula fiel de seu Filho, protagonizando o projeto libertador de Deus para a humanidade.
O culto à Maria não se faz apenas por intermédio de uma devoção fundamentalista da fé. Mais do que sustentar uma fé de devocionismo, que se faz nos templos, o mais importante é ter Maria como modelo de seguidora de Jesus. Uma mulher profética, corajosa e engajada, que não mediu esforços para estar ao lado dos pobres, marginalizados e indefesos. Ao dar o seu “Sim”, decidido e corajoso, ela passa por cima de toda uma tradição machista e patriarcal de sua época, se fazendo protagonista do projeto libertador de Deus ao lado de seu Filho. Esta versão da Mãe de Deus e nossa, fica evidente em uma de suas falas que o evangelista São Lucas assim registrou: “O Senhor realiza proezas com seu braço: dispersa os soberbos de coração, derruba do trono os poderosos e eleva os humildes; aos famintos enche de bens, e despede os ricos de mãos vazias”. (Lc 1,51-53) Este cântico de Maria é o cântico dos pobres que reconhecem a vinda de Deus para libertá-los através de Jesus.
Uma mulher profética que deu voz e vez as mulheres, num contexto em que elas eram menosprezadas pela sociedade. Por falar em profecia, o texto que nos é apresentado pela liturgia de hoje traz este forte teor profético, uma vez que Jesus recorre ao profeta Isaías, que teve o início de seu ministério profético no ano 754 a.C., coincidindo, inclusive, com a morte do rei Uzias de Judá e a fundação de Roma. Jesus utiliza-se de uma das falas deste profeta para desmascarar as atitudes mesquinhas e equivocadas dos fariseus e de alguns mestres da Lei, que estavam colocando em cheque a conduta comportamental dos discípulos de Jesus, quanto ao cumprimento das tradições judaicas. Não foi à toa que Jesus, numa das passagens do Evangelho de Mateus, se refere aos fariseus como: “raça de víboras, como podem vocês, que são maus, dizer coisas boas? Pois a boca fala do que está cheio o coração”. (Mt 12,34)
“Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos”. (Mc 7,6-7) Os fariseus se importavam muito mais com as aparências externas, do que propriamente com aquilo que cada um deles trazia em seu coração, conquanto a tradição fosse preservada. Jesus mostra-lhes que sem ser acompanhado por uma prática concreta de vida, o culto a Deus cai no formalismo vazio e se transforma na hipocrisia de uma religião falsa, corroída por falsos moralismos. Por outro lado, ultrapassando o âmbito do culto, Deus se revela e age nos acontecimentos, confundindo os planos que não coincidem com o seu projeto.
Jesus aproveita da ocasião para desmascarar o que está por trás de certas práticas apresentadas pelos fariseus e mestres da Lei como religiosas. Naquele contexto, Ele adota um exemplo concreto referente ao quarto mandamento, utilizando uma palavra que aparece apenas no Evangelho de Marcos: “Corbã”, significando “Sacrifício”, “oferta”, “oblação”. Literalmente, descreve aquilo que é levado para junto do altar. Esta é uma palavra hebraica que aparece em grego em Marcos 7,11, que era o voto, pelo qual uma pessoa consagrava a Deus os próprios bens, tornando-os intocáveis e reservados ao tesouro do Templo. Aparentemente Deus era louvado, mas na realidade os pais ficavam privados de sustento necessário, enquanto o Templo e os sacerdotes ficavam cada vez mais ricos.
“Esse povo se aproxima de mim com a boca e me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. A adoração que me prestam é feita só de regras ensinadas por homens”. (Is 29,13) Coração distante de Deus e da proposta do Reino trazida por Jesus. Podemos até nos apresentarmos todos os domingos nas celebrações, nos cultos, mantendo uma atitude aparentemente externa, cumprindo regras, ritos e normas, mas interiormente mantemos o nosso coração distante de Deus e da proposta do Reino anunciada por Jesus. Estar unidos ao projeto de Deus requer mais do que uma simples devoção mariana, desprovida das mesmas práticas da Mãe de Deus e nossa, que se fez discípula fiel do Filho de Deus nas coisas do Reino. Como a Mãe, que possamos dizer o nosso Sim corajoso e profético, poetizando como o nosso bispo Pedro: “Dizer teu nome Maria é dizer que a promessa vem com leite de mulher. Dizer teu nome Maria é dizer que nossa carne veste o silêncio do Verbo. Dizer teu nome Maria é dizer que o Reino chega caminhando com a história”. (Dizer teu nome Maria – Pedro Casaldáliga)
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