Meu eu criança
Quarta feira. Já estamos na metade da semana, depois de um feriado prolongado. Muitas pessoas descansadas, e outras mais cansadas ainda, graças ao “esforço” que fizeram nestes quatro dias de festim. Foi-se o Dia da Padroeira, também o Dia das Crianças. Estas últimas, já fazem a festa a parte, onde quer que estejam, dado o seu clima de alegria, simplicidade e espontaneidade, com que encaram o seu estar no mundo. Preocupação zero! Se bem que um Dia das Crianças, sem ter muito o que comemorar, em virtude das condições adversas que muitas delas estão vivendo neste atual momento de nossa história. Ser criança é um grande risco. Risco de não atravessar a “ponte para o futuro”.
Todos trazemos dentro de nós a criança que fomos um dia. Ela está ali no mais íntimo de nosso ser, pronta para desabrochar ao menor sinal nosso. É como se a criança que habita em nós estivesse dormindo o seu sono tranquilo. Quantos de nós, de tempos em tempos, não visitamos esta criança que dormita dentro de nós, dando vazão aos momentos já vividos, no outrora de nossa história, fazendo ressurgir momentos mágicos de pura euforia? Entretanto, o adulto sisudo, quase sempre censura, estes momentos pueris, impedindo que floresça, o jeito criança de ser em nome da “adultez” racional que prevalece. Diferentemente da infantilização, este reviver da criança dentro de nós, é como se fosse o retorno de uma vivência pura do jeito criança de ser. Ainda bem que a filósofa existencialista francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) já nos dizia: “O que é um adulto? Uma criança de idade”.
Dia das Crianças sem ter muito o que comemorar no Brasil. Sim porque grande parte das famílias destas, estão em situação de penúria e incertezas, com os pais sem emprego, salário e renda. Sem os três “Ts”, como dizia o Papa Francisco: “Terra, Teto e Trabalho”. Muitas destas famílias sem um teto para morar, uma vez que não dispõem de recursos para pagar o aluguel. Muitas destas crianças, inclusive passando fome. Os últimos dados dão conta, de que aumentou sensivelmente o número das pessoas em situação de rua nos grandes centros urbanos do Brasil. E o mais triste é saber que grande parte destas pessoas, são de crianças, que não tem mais as suas casas, tendo a rua como única opção de moradia.
Uma cena vista por mim no dia de ontem cortou o meu coração. Uma jovem mãe, com a sua criança ao colo, pedia ajuda na porta de um supermercado. Senti-me incomodado e me aproximei daquela menina com o seu bebê. Vanessa, tem 22 anos e viera há dois dias do Maranhão com o seu marido em busca de uma situação melhor para a família. Enquanto o marido trabalhava como diarista numa ocupação que arranjara, ela estava ali com a sua criança, pedindo ajuda. Sua situação se agravava pois, como ela mesma disse que o seu bebê não podia tomar leite comum, por causa da intolerância à lactose. Já demonstrando sinal de cansaço, nos momentos que estive ali a conversar com ela, várias pessoas pararam e, felizmente, contribuindo com o que podiam. Solidariedade espontânea.
Quantas mães não se encontram hoje na mesma situação daquela jovem mãe? Um país que não é capaz de cuidar de seu povo e, particularmente de suas crianças, não pode ser um país sério. Como pensar no futuro delas, se o presente que elas vivem está profundamente comprometido pela desigualdade tão latente em nossa sociedade? Fala-se tanto em um futuro para as crianças de hoje, sabendo que este futuro não virá, uma vez que o seu presente está comprometido. Até vimos nas redes sociais uma criança pobre, segurando um cartaz com a seguinte frase: “Eu não quero presente. Eu quero futuro”. Uma outra criança indígena, manifestando o seu desejo para o Dia das Crianças: “O presente que eu quero é ver a nossa terra demarcada”. Presentes estes que não dependem apenas de recursos financeiros, mas de vontade política de nossos governantes. Vontade política, artigo de luxo que tem faltado peremptoriamente, em boa parte de nossa classe política.
As pessoas que vivem em situação de rua são invisíveis. Invisíveis primeiro para os projetos econômicos daqueles que comandam a economia do país. Invisíveis também para muitos de nós cristãos, que fazemos questão de pensar, que eles não existem e nem sequer para eles olhamos como seres humanos que são. São inúteis e descartáveis. Como se fosse o lixo, uma escória da sociedade, que enfeia a cidade com a sua inquietante presença. Foi de uma destas pessoas que tive a minha maior lição de vida, na Praça da República, em São Paulo. Uma daquelas crianças se aproximou de mim e perguntou se eu não tinha nada que desse a ela para comer, pois estava com muita fome. Dei a ela uma barra de chocolate que tinha no bolso. Imediatamente ela colocou o chocolate dentro de seu calção. Foi quando perguntei a ela: então, não vai comer o chocolate? Ela me deu um “soco no estômago” ao dizer-me: “Não tio, vou esperar os meus amigos. Eles estão com fome igual eu”. Fui para casa meditando naquele Evangelho da vida, me lembrando daquela frase de um garoto no Camboja que carregava o seu irmão: “Ele não é pesado, ele é o meu irmão”.
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