Quarta feira da sexta semana do tempo comum.
16 de fevereiro. Uma data pra lá de especial para todos nós daqui da Prelazia de São Félix do Araguaia. No dia de hoje, nosso pastor, místico, poeta, profeta Pedro (1928-2020), estaria completando 94 anos, se não tivesse realizado a sua páscoa definitiva no dia 08 de agosto de 2020. Queria eu ter rompido a aurora deste dia, rezando com ele em seu túmulo, mas o outro Pedro, fez com que eu abortasse o meu plano, com a chuva mansa e intermitente que caia esta manhã sobre o Araguaia.
Nestes dias, retomei a leitura de um dos clássicos da literatura da Teologia da Libertação. “Na Procura do Reino”, editado pela vez primeira em 1988, nos faz viajar pela espiritualidade libertadora, através desta antologia escrita por Pedro, entre os anos de 1968/1988, por ocasião de seus 60 anos de vida muito ativa na Igreja que escolheu fazer-se presente como seguidor das mesmas pegadas de Jesus de Nazaré. Pedro sempre será lembrado pelos seus admiradores e até pelos seus “odiadores”. O que não dá para negar é que este é um homem de Deus, que viveu intensamente a sua peregrinação, encarnado nesta realidade de Mato Grosso.
Ele que chega à região no ano de 1968, aos 40 anos de idade, vindo da sua Espanha querida. Filho de uma família de agricultores, da província de Barcelona, onde desenvolvia um trabalho nada parecido com o que iria encontrar pela frente em terras matogrosenses, uma vez que era assessor dos Cursilhos de Cristandade. Todavia, nada disso impede que ele desenvolva em si um processo de inculturação radical, numa das regiões de terra arrasada, com um alto grau de analfabetismo, marginalização social e, sobretudo, de concentração fundiária, cujos latifúndios, com os seus “trabalhos escravos”, espalhavam o terror, onde eram comuns os muitos assassinatos. Seu cartão de visita nesta região foi uma caixa de sapato, deixada à sua porta, com alguns corpos de bebês dentro para serem enterrados.
O ano era o de 1968. A conjuntura nacional do país nada favorecia, para um trabalho de enfrentamento desta realidade, ainda mais num contexto em que a Ditadura civil militar reinava absoluta. Pedro, um homem de visão, encarou de frente o desafio que teria pela frente, ao pensar uma Igreja que trouxesse em seu âmago, os desafios desta Palestina do século XX. Evidente, que não trabalhou sozinho, mas tratou de construir um projeto feito em mutirão, com a ajuda de várias mãos e corações, de pessoas que, com ele se deram totalmente, sujando os pés descalços na poeira da estrada. Para contribuir neste processo, juntamente com alguns outros bispos da Amazônia, fundou o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), em 1972, e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), no ano de 1975. Ambos vinculados à Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Pedro, um homem de visão futurista. O olhar para frente, sem se esquecer do chão em que os seus pés estavam pisando. Um olhar na bíblia e o outro na realidade, como nos dizia o Frei Carlos Mesters. Enxergava na pessoa dos empobrecidos desta região, o rosto sofrido do Jesus histórico, no caminho de seu calvário. Identificou-se com esta realidade e traçou sobre ela a Igreja Povo de Deus dos pobres do Araguaia. Tão amada e perseguida na mesma proporção que avançava sobre a “Galileia dos pagãos”. Uma Igreja que marcou a história desta região e das muitas vidas de pessoas que com ela se identificou, doando suas vidas no caminho martirial da cruz de Jesus.
Uma Igreja, que na lucidez ao enxergar a realidade nua e crua dos pobres, se fez Igreja de Jesus e com Jesus, abrindo os olhos dos cegos do sistema, para fazer transparecer a realidade de miséria e sofrimento do povo de Deus que habitava por esta região. Como no texto do Evangelho de Marcos que refletimos na liturgia de hoje. Jesus que está em Batsaida, um povoado formado por pescadores no nordeste do Mar da Galileia. Cidade natal de Pedro, André e Felipe. A mesma Betsaida, que Jesus mais tarde a esconjura ao afirmar: “Ai de você, Betsaida! Porque, se em Tiro e Sidônia tivessem sido realizados os milagres que foram feitos no meio de vocês, há muito tempo elas teriam feito penitência…” (Mt 11, 21)
Estando ali com os seus, Jesus faz um pobre homem recuperar a sua visão de mundo. Mais do que curá-lo da cegueira física, o faz enxergar a realidade maior que o circunda. Desafio que se nos coloca também como forma de viver a nossa fé nos dias de hoje. Não de uma fé intimista, individualista, mágica e imediatista. As múltiplas cegueiras, nos acompanham na nossa forma de viver a fé, impedindo-nos de avançar para dentro da realidade de mundo em que vivemos. Enxergar o mundo e visualizar a possibilidade de transformação deste mundo, através das nossas ações, irmanados com o próprio Jesus, se fazendo conosco nesta realidade. Enxergar a realidade como a Madre Teresa de Calcutá que, mesmo tendo uma audiência marcada com o Papa João Paulo II, a caminho do aeroporto, resolve cuidar de um caído na rua, perdeu o vôo rumo a Roma.
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