Deus impotente ou impassível?
Para pensar em Deus, e nas coisas de Deus, devemos dar um salto em direção ao horizonte divino: o mistério. E com isso levar o espírito humano ao limite, a um espaço cujas dimensões não podemos medir. Se sentimos Deus dentro do nosso horizonte lógico, percebemos apenas suas contradições. Embora a Bíblia seja categórica em afirmar que Deus é um ser inteiramente bom: “Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1 João 4:8). “O Senhor é justo em todos os seus caminhos e bondoso em tudo o que faz” (Salmos 145:17), o mundo ao nosso redor parece contradizer isso.
Epicuro, filósofo grego do período helenístico, cerca de 300 anos antes do cristianismo propunha: “Deus ou não quer tirar os males e não pode, ou não pode e não quer, ou não quer nem pode ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que não pode ser Deus. Se pode e não quer, é invejoso, o que igualmente é contrário a Deus. Se não quer nem pode, é invejoso e impotente, portanto, não é Deus. Se quer e pode, o que só convém a Deus, de que provém a existência dos males e por que não os elimina?”.
Boécio, filósofo, poeta e teólogo romano, profunda influência na filosofia cristã do Medievo já se questionava: “Se Deus existe, de onde vem o mal. E se não existe, de onde vem o bem?”
A tentativa cristã de lidar com esse tripé que teima em não se equilibrar, “Deus todo-poderoso”, “Deus todo-amoroso” e a “existência do mal”, mostrando que a despeito do mal, Deus continua justo, bom e poderoso foi historicamente denominada Teodiceia (palavra criada por Leibniz) que significa a “Justificação de Deus” (do grego theós, Deus e dikê, justiça). Historicamente, na tentativa de se construir uma explicação que procura manter a justiça de Deus diante do mal, vários tipos básicos de teodiceia foram elaborados.
Onde está Deus?”
É a pergunta que revolta o homem e que sempre volta de novo. “Como Deus permite tantas guerras, campos de concentração, genocídios e o holocausto, o maior crime que a humanidade conheceu?” O Deus que cremos, o Deus descrito pelo evangelista João como verdadeiramente “Amor”, como pode ser compatível com essas realidades? como pode esse Deus permitir tanto mal? Para Adolphe Gesché, teólogo belga, professor de teologia em Lovaina, falecido neste século, o mal não só é um escândalo (quer para o coração, como para a razão), como também é aquilo que mais nos revolta neste mundo e, talvez por isso, é o que desencadeia as «mais extremas e agudas perguntas».
Mas…. será mesmo verdade que tudo o que acontece no mundo depende só Dele? Foi assim em todos os momentos obscuros e sangrentos da história de todas as nações? Ou nessa terrível questão do mal, Deus não será, de certo modo, […] o Ecce Homo, flagelado e ironizado com a “realeza” de uma coroa de espinhos colocada por homens, que o julgam “culpado” e com isso permite primeiro que caiam sobre Si as críticas? E talvez indo mais longe, a figura do Ecce Homo não chega a ponto de sugerir que o homem, nessa necessidade de culpar, se arvora o direito de esbofetear o Deus inocente? Talvez seja justamente por isso que Ele se colocou aí : para ser julgado e sofrer pelos pecados e crimes praticados pelos homens, do justo pelos injustos, para dessa forma conduzir-nos a Deus (1Pd 3,18). Deus se põe sob o juízo do homem, como disse João Paulo II, que lhe fez estas mesmas perguntas há 2 mil anos atrás: “Tu es rei? (Jó 18,37)”.
O questionamento é próprio do homem que pensa. E a indignação frente ao mal é próprio do homem de bem. Contudo, o grito de sofrimento que existe no peito de um homem deve ser dirigido para Deus. Jesus o fez na Cruz! Há que falar com Deus, com queixas e lamentações. Há que gritar a Deus. João Paulo II em um belíssimo depoimento, transformado em livro “cruzando o limiar da Esperança”, nos relembrava que Deus criou o homem não apenas dotado de liberdade, mas também de razão e por isso mesmo, submeteu-se (Ele Deus!) ao juízo do homem. Relembramos novamente o episódio do Ecce Homo. “A história da salvação”, diz Joao Paulo II, “é também a história do incessante juízo do homem sobre Deus”. (JPII, 72)
Desta forma, como cita um dos expoentes no campo da fenomenologia e da hermenêutica do século passado, Paul Ricoeur, em seu livro, “O mal: um desafio à Filosofia e à Teologia” conclui que o mal é uma «provocação para pensar sempre mais e de modo diferente, por isso não se deve deixar de pensar o mal”. (RICOEUR, 1988, p 47).
Mas… existe liberdade verdadeira sem que se permita a possibilidade do mal em oposição ao bem?
Nas questões sobre “onde está Deus?”, encontramos a forma mais clássica (simples?) do ateísmo. O discurso , “contra Deus” é aquele que considera Deus «responsável direto ou indireto do mal, pois não pôde ou não quis impedir, não existe ou não pode existir, a não ser que o consideremos como perverso ou inútil, o que acaba com a ideia de Deus» (GESCHÉ, p. 14-15). E nem poderia ser de outra forma…
Segundo Gesché, este discurso ateu é um grito de revolta que o homem usou para se expressar perante o escândalo do mal, mesmo correndo o risco de ser acusado de blasfêmia. Mas a blasfêmia, que muitas vezes se pronuncia como acusação, é mais uma revolta contra o mal do que contra Deus. O ateísmo, ao recusar um Deus mau, deixa entender que aceitaria um Deus bom (GESCHÉ, p. 14-16). Daqui se conclui que:
“O grito de um ateu não é tanto um grito contra a existência ou a bondade de Deus, quanto um grito contra um mundo que parece tornar impossível sustentar que existe um Deus que, de outra maneira, talvez não fosse rejeitado. […] O verdadeiro cerne da objeção […] está mais na compreensão da natureza de Deus do que na discussão de sua existência. Então o problema ganha toda uma outra dimensão”. (GESCHÉ, p. 17).
Um discurso “a favor de Deus”, também denominado como “teodiceia”, é uma tentativa de mostrar que Deus não é responsável nem direta, nem indiretamente pelo mal, havendo unicamente a possibilidade da sua permissão, decorrente da liberdade dada ao homem. Para Gesché, este discurso tem uma objeção….não só exclui Deus do problema do mal que causa sofrimento, como o faz de forma que não é correta. Uma verdadeira concepção de Deus preocupa-se com a questão do mal, por que o homem de fé deve procurar entender como Deus é, como ele responde e “reage” diante do mal […] (GESCHÉ, p. 38). E para poder adentar nessa questão a única fonte que temos é a revelação em sua dimensão maior em Jesus Cristo. Ou seja, em nossa reflexão, é melhor deixar Deus ser Deus e ouvi-Lo.
Na sua atividade pública, Cristo tornou-se incessantemente próximo do mundo e do sofrimento humano. Passou fazendo o bem; e em primeiro lugar para com os que sofriam e os que esperavam ajuda. Curava os doentes, consolava os aflitos, dava de comer aos famintos, libertava os homens da surdez, da cegueira, da lepra, do demônio e de suas deficiências físicas; por três vezes, restituiu mesmo a vida aos mortos. Se emocionava. Chorou. Era sensível a toda a espécie de sofrimento humano, tanto do corpo como da alma.
Justamente por esse motivo não se deve retirar Deus neste tipo de discurso sobre o mal e o sofrimento, nem também tirar o próprio homem que grita e que geme e O procura. O discurso da teodiceia impede Deus de ouvir o clamor do seu povo e deixa o homem sem um interlocutor na sua dor. Ao querer retirar Deus do problema do mal, ou inocentar Deus de forma radical, acaba o homem expulsando-O do problema, quando o fundamental é que Ele aí esteja presente. Pois Ele sempre esteve presente. Como Jesus esteve presente no cego, no paralitico, no coxo, no endemoniado….. E na própria paixão, assumindo em Si todas essas dores e males. “Sem isto, não acabaria o homem, contradizendo até sua própria fé?”.
Em suma, ambos discursos excluem Deus do problema do mal. O primeiro, porque considera que Deus não existe. O segundo, porque considera que o problema do mal não diz respeito a Deus. Culpando ou desculpabilizando Deus, não se preocupam propriamente com o problema do mal, mas com Deus. O Deus acusado (no primeiro discurso) ou defendido (no segundo discurso), perante o problema do mal, é, no fundo, o Deus dos filósofos (o “Deus absoluto, em si” ou “por si”) que falam “sobre Ele” e não “com Ele” como o Deus dos crentes (o “Deus para nós”, “para o homem”) o Deus que se revela em Jesus Cristo.
Em todos os momentos, Deus une-se ao grito do homem e o homem une-se ao grito de Deus. Tal como em todas as coisas, é Deus que toma a iniciativa, é o primeiro interessado […], primeiro atingido, porque o mal O atinge e atinge o objeto de Seu amor: a sua criação. Daí que o mal também seja uma questão de Deus e não só do homem! “O mal deixa de ser uma objeção contra Deus, porque é Deus que se torna objeção contra o mal” (cf. GESCHÉ, p. 32). E se Ele não existisse, seria precisamente por causa do mal que Ele teria de ser “inventado”.
O homem, ao invocar, clamar e desejar Deus, O descobre lutando e salvando-o dessa irracionalidade. Daí que o amor seja a mediação da salvação por excelência, porque é paixão, excesso e ausência de cálculo, de lógica humana sendo precisamente isso o que é necessário para combater o mal. Além disso, enquanto o mal é destruição, aniquilação e desordem absoluta, o amor é (re)criação, portanto algo ligado ao domínio exclusivo de Deus. Às vezes, na justiça humana, há um gosto de rigor, de vingança. Contudo, o amor necessita da justiça, porque a justiça está «do lado da resposta às necessidades –e que, evidentemente, devem ser satisfeitas» (GESCHÉ, p. 89), como, por exemplo, as reformas e as mudanças estruturais que permitem mudar diversas situações sociais que, sem a justiça e só com a caridade de alguns, não se alterariam.
Sobre o mal
Vários teólogos adentraram sobre este tema: o MAL. Vejamos Paul Ricoeur:
“Uma causa principal de sofrimento é a violência exercida sobre o homem pelo homem: em verdade, fazer mal é sempre, de modo direto ou indireto, prejudicar outrem, logo, é fazê-lo sofrer; na sua estrutura racional –dialógica –o mal cometido por um encontra sua réplica no mal sofrido por outro; é neste ponto de intersecção maior que o grito de lamentação é mais agudo, quando o homem se sente vítima da maldade do homem” (RICOEUR, 1988, p. 24-25).
Centrado na ação, na vontade e no livre arbítrio do homem, seu discurso vai deixar de se interessar pela pergunta “de onde vem o mal?” para se voltar na pergunta “porque fazemos o mal?”, chegando à seguinte conclusão: Por um lado, a deficiência que existe na criatura (em relação ao Criador), em conjunto com a sua livre escolha, permite que cada criatura se afaste do bem (Deus) e se aproxime do mal (do nada).
Seja como for, mais uma vez, o protesto do sofrimento injusto fica sem resposta. “Este discurso também não responde ao problema do sofrimento injusto, do mal sofrido imerecidamente”. Justamente porque o mal que mais nos instiga e revolta, é o mal causado injustamente ao homem.
O Ocidente preocupa-se, em primeiro lugar, em encontrar o culpado (provavelmente o sistema judiciário e a nossa sistemática moral levam a isso). Ora, o Evangelho mostra um interesse maior pela vítima do que pelo culpado. De acordo com o Evangelho de João, Jesus viu um homem que era cego de nascença. Seus discípulos lhe perguntaram: “Mestre, quem pecou para que este homem nascesse cego, ele ou seus pais?” Jesus não nos dá “causa” ao mal, mas o cura. O liberta como prova da ação de Deus sobre o mal («Nem ele pecou nem seus pais, mas isto se deu para que as obras de Deus nele sejam manifestas. É necessário que façamos as obras daquele que me enviou…”). Outro exemplo está na parábola do Bom Samaritano: a preocupação maior é com o inocente que sofreu um mal imerecido. Essa é a prioridade da mensagem de Jesus. Em relação ao culpado, é preciso ter em conta «que o mais importante é derrotar o mal e salvar[.] […] E se for necessário julgar, isto é, condenar, façamo-lo, já que é preciso, mas sempre tendo em vista salvar, curar, tirar o sofrimento, nunca por outras razões» (GESCHÉ, p. 50-51).
O mal entra no homem por consentimento. O que significa que também há culpa humana, e esta é adesão do homem a algo que lhe vem de fora.
Mas porque razão o homem adere a esse mal? Porque ele é frágil, vulnerável e livre para optar, aderindo, de livre vontade, à tentação, à sedução, que lhe vem de fora. Daí que o culpado também seja uma vítima : «vítima de solicitações, de heranças, do peso de condicionamentos sociais e psíquicos que devem ser levados em conta e dos quais é preciso procurar libertá-lo» (GESCHÉ, p. 55). Por isso, o mal não tem redenção (cf. GESCHÉ, p. 49), mas o pecado, que é consentimento, tem! Como nos lembra Paulo:
“Sei que nada de bom habita em mim, isto é, em minha carne. Porque tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo. Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer esse eu continuo fazendo. Ora, se faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim”. (Rm 7, 15.17-19)
Se a teologia focasse, em primeiro lugar, na justiça ou coragem, ela nos colocaria em erro, pois pareceria que a ética bastaria contra o mal. Mas não basta. Sendo o mal algo incompreendido pelo homem, só outra incompreensão do homem pode ir ao encontro dele; e se o mal é excesso, só outro excesso pode ir contra ele. Ora, sendo Deus “superabundância, loucura, gratuidade, prioridade, profusão, saída de si, graça desmedida, perdão” (GESCHÉ, p. 77), só Ele pode fazer frente ao mal.
Silêncio de Deus ou silêncio dos homens?
O homem tem responsabilidade PELA maior parte do mal presente no mundo, havendo que responsabilizar e culpabilizar o homem pela maior parte do sofrimento (mesmo o injusto) que há no mundo. Se a violência do homem sobre o homem diminuir, muito do mal (senão mesmo todo) irá diminuir. A fácil posição em culpar Deus não leva em conta as terríveis consequências da irresponsabilidade humana: destruição, dor e sofrimento no mundo.
Gostaria de terminar recordando aqui de um belo conto do admirável rabino Henry Sobel, morto há poucos anos, e com isto lhe presto minha homenagem e meu agradecimento pela sua vida repleta de Deus, de amor e de justiça:
“Existe uma lenda de um rabino que se preparava para viajar de Israel para Roma. Na noite anterior à sua partida, ele teve um sonho no qual viu um mendigo esfarrapado sentado às portas de Roma. No sonho, ele ouviu uma voz que lhe dizia: `Vê este homem? Este é o Messias vestido de mendigo. O rabino acordou e não conseguiu mais esquecer o sonho. Continuou a pensar nele durante toda a viagem. Finalmente, ao aproximar-se de Roma, avistou um homem maltrapilho, sentado exatamente no local que havia visto no sonho. O rabino chegou-se a ele e questionou: `É verdade que você é o Messias? E o homem respondeu: `Sim`. O rabino, então, perguntou: `O que é que você está fazendo às portas de Roma? E o homem replicou: `Estou esperando. Ao que o rabino retrucou: `Esperando?! Num mundo tão cheio de miséria, ódio e guerra, num mundo onde o povo de Israel está disperso e oprimido, num mundo onde existem crianças famintas, você está aqui, sentado, esperando?! Messias, pelo amor de Deus, o que é que você está esperando? E o Messias respondeu: `Tenho esperado por você, para poder lhe perguntar, em nome de Deus, o que é que você está esperando.”
Ao olhar para os tristes acontecimentos da Ucrânia hoje, e para trás na história e ver as grandes guerras, a escravidão, os campos de concentração e tantos genocídios, deveríamos nos perguntar aonde estavam os homens de bem nesses momentos. Se tivessem levantado suas vozes e lutado pelos mais necessitados não haveria necessidade de perguntar mais tarde: “O que houve com Deus?”
Em cada injustiça cometida ou sofrimento impingido a outro, a culpa se divide entre os que a causam e os que se calam e não gritam por Justiça, amor, misericórdia. São ambos cumplices do mal. Na sentença final da condenação de Jesus, na presença de Pilatos, naquela manhã, ouviram-se apenas os gritos “Barrabás, Barrabás” daqueles que não conheceram Jesus. Mas não foram eles, minoria, que o condenaram. Tampouco foram os Judeus ou os Romanos, pq inimigos de Jesus sempre haverá. Quem condenou Jesus, como condenam a todos os injustiçados, foram aqueles que O viram, criam Nele, O experimentaram e …. se calaram!
Bibliografia
CARTA APOSTÓLICA SALVIFICI DOLORIS DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II
RICOEUR, Paul –O mal: um desafio à Filosofia e à Teologia. Tradução de Maria da Piedade de Almeida. São Paulo: Papirus, 1988.
GESCHÉ, Adolphe –O mal. São Paulo: Paulinas, 2003. Deus para pensar; 1.
EPICURO, Antologia de textos. col. Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973.
BOÉCIO. A Consolação da Filosofia. São Paulo, Martins Fontes, 1999.
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