Os livros do Gênesis e do Êxodo são ricos no uso da palavra fome e sede. Colocam essas duas condições, naturalmente necessárias á sobrevivência humana, como cuidados da justiça de Deus. Nesses livros observa-se um Deus sempre preocupado em alimentar o seu povo e saciar-lhe a sede.
A fome fez o antigo judeu procurar a fartura do Egito. Lá ele encontra um solo rico e água em abundância. Mas ele perde a sua referência cultural, a sua liberdade, e começa a perder seu Deus. O medo da fome o fez trocar a sua liberdade pela segurança daquilo que lhe dá a vida. O medo da fome o fez escravo.
Deus devolve-lhe a liberdade da escravidão braçal, mas o homem não percebe que durante a travessia no deserto, o que lhe está sendo oferecido é muito mais que isso.
Naturalmente a água e o alimento são coisas essenciais á vida humana. E são nessas condições de necessidade, cercada de cuidados de Deus, que Ele começa a se revelar á uma sociedade ainda em formação. Doze tribos peregrinando pelo deserto, sob o comando daquele que acreditam ser o libertador enviado por esse Deus.
O homem teve medo e Deus o amparou. Teve fome e Deus o alimentou. Teve sede e Deus fez jorrar água de Pedras (cf Ex 16,4). O primeiro exemplo de solidariedade que o homem teve foi dado pelo próprio Deus Javé que atendia as necessidades de seu povo no decorrer de sua caminhada. De Moisés veio o outro exemplo dessa solidariedade, ao levar a Deus os seus pedidos, as necessidades deste povo, a suplicar o perdão de suas transgressões. Ao dedicar a sua vida ao projeto de Deus: libertar seu povo.
Mas o texto sagrado nos leva a uma reflexão mais profunda.
Fome significa o estado mais frágil do homem. É uma condição que o leva a morte. Algo o priva da continuidade da vida. Todo o corpo responde a esse impulso de sobrevivência com dor e angústias. O medo da fome faz do homem um escravo. E, novamente, o Deus libertador surge no milagre do maná para retirar do homem o jugo imposto pelas suas necessidades. A natureza, portanto, fornece ao homem o seu alimento. Não o escraviza através dele.
É o próprio homem que conhecendo essa necessidade, aproveita-se dela para escravizar seu semelhante. Não se torna um Moisés para seu irmão, libertando-o. Prefere tornar-se um Faraó, seduzindo o homem enfraquecido com a promessa de riqueza e da segurança na satisfação de suas necessidades.
A igreja Católica nos últimos 50 anos, responde com a ação evangelizadora dos leigos, alertando-os para a obrigação do Cristão de ver as injustiças que o próprio homem comete contra seu semelhante e, num primeiro instante, ampará-lo e ajudá-lo nos tormentos que essa necessidade, seja ela qual for, lhe impõe. (Cf. AA 8d).
Para poder discernir as verdadeiras necessidades do irmão, vale a inspiração divina. Sempre Ele estará guiando aquele que tem Fé e procura fazer a Sua vontade. Não tentar preencher as necessidades do pobre com o que acreditamos que ele necessite, mas com o que ele verdadeiramente necessita. “profeta, já que vê aquilo que o olho não viu” (Eusébio de Cesaréia, Demonstr.Evang., em PG 22,92-93).
Contudo, nem a misericórdia nem o amparo dado a quem sofre deve excluir a sua dignidade. A dignidade daquele que sofre é sagrada aos olhos de Deus. Não importa o motivo pelo qual aquele homem chegou a essa condição. Não nos cabe julgar, mas vesti-lo se estiver nu e alimentá-lo se tiver fome. Deus fez para Adão e sua mulher, mesmo sabendo de seu pecado, vendo-os envergonhados e cobrindo-se com folhas de figueira, umas vestes de peles de animais, e os vestiu para devolver-lhes a dignidade, (Cf Gn 3,21).
Reconhecer a pessoa humana é fazer com que esse outro estranho, o pobre assumido por Medellín e Puebla, seja introduzido na vida social, possa falar, ainda que não saiba exprimir-se corretamente, possa manifestar a sua existência. Se não for assim, a pessoa humana permanecerá reprimida, negada. (José Comblin, “Antropologia Cristã” , Vozes 1985).O pobre, o excluído, o necessitado não precisaria de caridade se os seus direitos não lhe tivessem sido negados. É claro nesse ponto, o código da aliança: “Não favorecerás com parcialidade um fraco em seu processo”. (Ex 23, 3). Ele não precisa de tua parcialidade ou que lhe sejam feitos favores especiais. Ele tem o seu próprio direito dado por Deus. Basta apenas que o homem não lhe negue este direito!
O problema dos excluídos hoje é um problema de uma sociedade injusta e baseada apenas no lucro. Não se aplica o direito igualitário numa sociedade baseada na desigualdade de posses. Cria-se a idéia do “mais adaptado é o que mais possui”. A medida das realizações humanas no capitalismo é proporcional as suas posses. Admira-se um pobre que se tornou multimilionário. Mas rejeita-se, e até com zombarias irônicas, um rico que doa tudo aos pobres. Esse exemplo de cristão, para o sistema capitalista não é um bom exemplo para admiração.
Contrariamente a idéia corrente, o excluído é uma responsabilidade minha. Independente também dos motivos sociais que o deixaram nessa condição, o amparo e a condição de dignidade devem ser rapidamente preenchidas pelo Cristão. “Não falsificarás o direito do TEU pobre no seu processo”. (Ex 23 6).
Novamente o código da aliança nos lembra que não se refere a UM pobre. Mas a um pobre que tem um responsável por ele: Todo homem que um dia quiser ser chamado “filho de Deus”.
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