Quinta feira depois das Cinzas. Marcados por este gesto simples e humilde de colocar sobre as nossas cabeças as cinzas, seguimos dando os primeiros passos neste período quaresmal, rumo à nossa conversão. Este é o momento oportuno da nossa caminhada de fé, em que devemos nos lembrar de que somos as criaturas diante do Criador. Recordar que sem Deus na nossa vida, somos apenas pó. Nada de arrogância, prepotência e autossuficiência, sobretudo porque, como nos recorda o Livro do Gênesis: “Do pó viemos e ao pó retornaremos”. (Gen 3,19) Para vivermos plenamente esta nossa dimensão de criaturas, basta reconhecer quem somos, sendo nós mesmos, sem maquiar a nossa personalidade. Como diria o filósofo e poeta estadunidense Ralph Waldo Emerson (1803-1882): “Ser você mesmo em um mundo que está constantemente tentando fazer de você outra coisa é a maior realização”.
Por falar na arte de filosofar, hoje é o dia em que celebramos o nascimento de um dos maiores artistas que a humanidade já conheceu: Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni, ou simplesmente Michelangelo (1475-1564). Pintor, escultor, poeta e arquiteto italiano, tudo presente na vida deste artista. Sua obra mais conhecida é a escultura Pietà, feita em pleno período Renascentista. Uma das mais belas e impressionantes obras da história da arte do Ocidente. Obra produzida em mármore no ano de 1499. Nela, o artista representa a cena bíblica em que a Virgem Maria, cheia de ternura, segura em seus braços seu filho Jesus já sem vida. A escultura está localizada na Cidade do Vaticano, na Basílica de São Pedro. Um artista que primou e expressou na sua arte toda sua amorosidade, já que ele mesmo dizia: “O amor é a asa veloz que Deus deu à alma para que ela voe até o céu”.
Amor traduzido na arte pedagógica de ensinar, que Jesus encarregou-se de transmitir a seus discípulos, como o texto de Lucas hoje nos faz refletir. Estamos diante do primeiro anúncio da Paixão de Jesus. Aliás, esta passagem de hoje está presente em todos os Evangelhos. Jesus preparando os seus discípulos para o que viria ali à sua frente: sofrimento, dor, tortura, morte. Entretanto, o fim último de sua vida não encerraria na sua morte, mas na Ressurreição, uma vez que a última palavra não é morte, mas é vida, porque Deus é o Senhor da vida plena para todos e todas. Um Deus que está presente na história da humanidade desde sempre, como atesta um dos escritos do profeta Jeremias: “Porque sou Eu que conheço os planos que tenho para vocês, diz o Senhor, planos de fazê-los prosperar e não de causar dano, planos de dar a vocês esperança e um futuro”. (Jr 29,11)
Os tempos de crise e grandes dificuldades são também tempos de expectativa e de oportunidades para fazer a diferença e não nos deixarmos cair na desilusão e desesperança. Neste sentido, Jesus foi enfático com os seus: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia, e siga-me”. (Lc 9,23) O caminho da cruz. Cruz de cada dia. O caminho do calvário. O caminho de Jesus. O caminho da vitória. O caminho para a Ressurreição. O caminho para a vida plena. E quem quiser acompanhar Jesus na sua trajetória de ação libertadora messiânica e participar da sua vitória, terá que percorrer caminho semelhante: renunciar a si mesmo e às glórias do poder, do prestigio, dos privilégios e da riqueza.
Certamente, não são todos que adentrarão por este mesmo caminho com Jesus. Alguns preferirão o caminho inverso do acúmulo, da ganância sem fim, do consumo exagerado, do ter sempre mais para ser alguém na sociedade da abastança e serem elogiados pelos homens. A cruz de cada dia, da qual fala Jesus, requer renúncias cotidianas. A proposta de Jesus que exige a renúncia de si mesmo, não significa que Ele está menosprezando a pessoa humana, mas que ela se torna mais autêntica quando não se coloca no centro das atenções, como o ser mais importante diante do todo. Renunciar a si mesmo é, quem sabe, fazer a mesma experiência da semente, que abre mão de si mesma para se transformar em frutos abundantes, dentre outras sementes mais. “Se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, continuará ele só. Mas, se morrer, dará muito fruto”. (Jo 12,24)
Quem sabe, ou aprende a renunciar a si mesmo, sabe também valorizar aquilo que vem de fora de si. Como vivemos num mundo cada vez mais egocêntrico e “egolátrico”, em que as pessoas valorizam a mais a imagem de si mesmas, aquilo que as rodeiam, talvez esta proposta de Jesus esteja fora de sentido. Quem é capaz de renunciar a si mesmo, tem mais facilidade em seguir os ensinamentos de Jesus, fazendo também suas as causas do Evangelho. Como estamos neste tempo propício, em que somos chamados e desafiados a uma mudança radical de fé, converter é também fazer esta experiência mais profunda dos valores que os evangelhos nos propõem. Não se trata apenas em afirmar que “o Senhor está no comando de tudo”, mas antes dizer que estamos dispostos a assumir as nossas renúncias, tomando as nossas cruzes de cada dia, esperançando sempre no Senhor.
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